Movimentos sociais lutam para a vida do rio Tocantins na Amazônia

Planos de implantar corredor logístico no rio Tocantins, no norte do Brasil, ameaçam o ecossistema na Amazônia. Movimentos sociais esperam abertura de diálogo com novo governo progressista.

March 27, 2023

O sol se põe quando cerca de 25 participantes da caravana de barcos partem para a cidade de Cametá após encontro com uma comunidade ribeirinha, 31 de janeiro de 2022. (Claudia Horn)

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.

Em um dos dias mais quentes do “inverno amazônico” no final de janeiro, mais de 200 ribeirinhos e extrativistas de 12 comunidades às margens do rio Tocantins na Amazônia paraense, reuniram-se por três dias, na sede do Quilombo São José do Icatu para uma oficina sobre protocolos de Consulta prévia, livre e informada. O objetivo era socializar protocolos coletivos para pressionar o Estado a proteger seus direitos constitucionais e internacionais de consulta sobre projetos que atingem seus territórios, mais dramaticamente a hidrovia Tocantins-Araguaia. Como disse a Maria José Brito da Associação de Pescadores de Icatu, "a hidrovia Tocantins-Araguaia está chegando para tirar este rio".

A oficina ocorreu algumas semanas após a realização da posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de quatro anos de governo de extrema-direita. E para os ativistas da região amazônica—uma das últimas fronteiras de riquezas naturais ainda preservadas—as pressões são ainda maiores. Sob o governo Lula, os ativistas esperam o retorno de fiscalização ambiental para diminuir o desmatamento e a degradação ambiental. Ao mesmo tempo os movimentos sociais preveem conflitos sobre grandes projetos de infraestrutura e logística para a exportação de commodities como a hidrovia Tocantins-Araguaia. O projeto visa melhorar as condições de escoamento de grãos para os mercados europeu e asiático, com ênfase na China, ameaçando o ecossistema do Rio Tocantins que sustenta centenas de milhares de famílias.

A cerca de um ano, em fevereiro de 2022, ativistas da Central Única dos Trabalhadores – CUT, em conjunto com a Federação dos Trabalhadores Agrícolas no Pará (FETAGRI/PA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e outros representantes de grupos locais dos ribeirinhos, pescadores e extrativistas embarcaram numa caravana de oito dias de barco e de ônibus que percorreu o rio Tocantins. Viajando do porto industrial de Barcarena até Itupiranga, a caravana visitou 11 comunidades que serão afetadas pela hidrovia Tocantins-Araguaia para informar sobre os impactos, mobilizar as pessoas e construir uma rede de enfrentamento contra a construção. Mas em 11 de outubro de 2022, nos meses finais do governo anti-ambiental de Jair Bolsonaro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu uma Licença Prévia ambiental. Com o início do governo Lula, a mensagem da caravana é urgente: "O rio é vida!”.

Maria José Brito (Claudia Horn)

Defendendo o rio

Com mais de 2.400 quilômetros, o Rio Tocantins é o segundo maior rio totalmente inserido no território brasileiro. Nascendo no estado de Goiás, perpassa os estados do Tocantins e Maranhão e tem sua foz no Pará, próximo a Capital, Belém. A bacia do Araguaia-Tocantins, banha 409 municípios das regiões Centro–oeste, Norte e Nordeste do Brasil, conectando com suas águas os biomas do cerrado e da Amazônia, onde vivem, às suas margens povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, pescadores artesanais e agricultores familiares.

O pescador Jonivaldo da Conceição Castro, de Igarapé Miri, relatou durante uma das reuniões da caravana, que a grande maioria dos 70 mil habitantes do seu município vive da pesca artesanal e da agricultura familiar. Afirmou ainda: "A construção mataria várias gerações, várias culturas... mexer com o fundo de rio desse jeito—não dá para imaginar como os peixes vão se readaptar para permitir a vida no rio".

A hidrovia foi projetada na vigência da Ditatura Militar instaurada em meados da década de 1960 e considerava integrar a Amazônia ao desenvolvimento econômico nacional através da colonização com aporte de recursos para os grandes projetos de infraestrutura. Na década de 1970, inicia-se a implantação da maior hidrelétrica do mundo à época, a UHT Tucuruí. A inundação proporcionada pelo reservatório resultou no deslocamento compulsório de 2.343 famílias de ribeirinhos, alterando as marés e elevando o leito do rio com o surgimento de bancos de areia. Jonivaldo, que tinha três anos quando a barragem foi inaugurada afirmou que, com a hidroelétrica, diminuiu o estoque de espécies de peixes locais como o Mapará, desencadeou violência e pobreza, e deixou um "sabor amargo de derrota”.

A intenção do projeto da hidrovia é viabilizar a navegação de embarcações sem as interrupções sazonais que o regime das águas impõe, a fim de compor o “arco norte” que conectará os grãos produzidos no Centro-Oeste, numa rede de integração intermodal que conectará o Porto de Santos ao Porto de Vila do Conde, em Barcarena, Pará, através de ferrovias, rodovias e hidrovias ligando o Atlântico tropical ao Atlântico equatorial e caribenho.

Segundo Filippe Bastos, Secretário executivo da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará, os propósitos da hidrovia mudaram ao longo dos anos. O estudo de impacto ambiental (EIA-RIMA) mais recente, realizado pela empresa brasileira DTA Engenharia contratada para a construção, e apresentado em 2018 pelo responsável pela obra, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) do Ministério dos Transportes, coloca a hidrovia projetada com 70-100 metros de largura, muito mais do que o primeiro estudo datado em 1999. O projeto original estava inserido no contexto do projeto Grande Carajás, e visava dar à extração de minério de Carajás uma alternativa logística. Entretanto, em 2008, a Vale começou a embarcar do terminal de Ponta da Madeira, no Maranhão, perdendo o interesse no projeto. Hoje, a pressão para a implantação da hidrovia é exercida sobretudo pelo agronegócio. "Mas não é o agronegócio do Pará", explicou Bastos, "mas o agronegócio do Centro-Oeste, porque a hidrovia favorece os grandes produtores dos estados do Tocantins, Goiás e Mato Grosso". Ou seja, sequer são os produtores paraenses os grandes beneficiários do empreendimento.

As primeiras afetadas serão as comunidades ribeirinhas de Itupiranga, onde 35 quilômetros de formações rochosas no rio, chamadas de Pedral do Lourenço, devem ser detonadas para dar lugar ao tráfego de navios. Durante a caravana os pescadores locais levaram os visitantes aos importantes criadouros de peixes. Em uma pequena ilha pedregosa, uma árvore de Murici cresceu da rocha—um testemunho vivo do exuberante ecossistema em jogo. O projeto prevê trazer três detonações por dia, cada uma com um raio de um quilômetro, durante dois anos.

Jovens integrantes da caravana de barcos realizam apresentação sobre o Rio Tocantins para uma multidão de famílias de comunidades do município de Cametá, 31 de janeiro de 2022. (Claudia Horn)

Além do Pedral do Lourenço, o projeto inclui dragagens e demolições ao longo de um total de 212 quilômetros de rio a montante e a jusante da usina hidrelétrica de Tucuruí para remover bancos de areia, solo, sedimentos naturais e rocha. De acordo com o relatório de impacto ambiental de 2018 do DNIT, este trecho do rio abriga 207 espécies de peixes, sendo mais da metade consideradas importantes para a economia local. O relatório estima que a hidrovia impactará entre 6.500 e 12.000 pescadores e pessoas que trabalham no setor pesqueiro. Mas o relatório de diligência da investigação da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Estadual, presidida pelo Deputado Bordalo aponta que 30 mil famílias ribeirinhas serão diretamente afetadas.

A maioria das pessoas que nos recepcionava ao longo do rio não foi informada sobre os detalhes e impactos socioambientais do projeto. Como Antônio Dias, membro do MAB e diretor da Associação dos Ribeirinhos de Cametá, disse: "A hidrovia ainda é uma coisa desconhecida para nós, um fantasma". A consulta às comunidades tem ficado aquém, principalmente no que se refere a informar os moradores sobre o impacto social do projeto, informação essencial para garantir seus direitos de consulta livre, prévia e informada.

Na viagem de 14 horas de ônibus de volta de Marabá para Belém após a viagem de barco, a coordenadora de caravanas e então secretária geral da CUT Carmen Foro, que é natural de Igarapé-Miri, lamentou a falta de consideração das empresas multinacionais que se beneficiam do projeto com o bem-estar local. Foro afirma: "Nem a atual barragem de Tucuruí nem a hidrovia estão planejadas com as necessidades dos pescadores, camponeses e comunidades ribeirinhas em mente. Pelo contrário, depois da construção da barragem, foram anos de mobilização para levar energia elétrica para as comunidades, enquanto a produção pesqueira diminuía".

Numa outra conversa com Foro, três meses depois, ela notou que a caravana havia atraído a atenção e o recuo. "Agora, três grupos de interesse se formaram", explicou ela. Um grupo, representado pela caravana e seus aliados, é contra a hidrovia e busca alternativas para evitar a destruição do rio. Outro grupo, formado principalmente por empresários e grandes agricultores, apoia o projeto e tenta conquistar as comunidades tradicionais. O terceiro grupo, prefeitos locais, toma posições para ajudar a garantir sua reeleição.

Atualmente o projeto está parado. No dia 9 de março deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu uma recomendação ao Ibama para que seja suspensa a licença prévia da obra.

A licença preliminar concedida pelo Ibama em 2022 inclui condições que devem ser cumpridas antes que as obras possam avançar, especialmente consultas e avaliações do impacto social. Uma dessas condições é que o DNIT compense as comunidades afetadas pela perda de renda. Para Iury Paulino da coordenação nacional do MAB, qualquer promessa de indenização é uma armadilha. Ele afirma: "Eu sempre digo, mostre-me um caso em que as condições da comunidade foram atendidas. Se houver [tal caso], estou aberto a discutir e aceitar uma proposta, mas nenhuma experiência em nenhum país que visitei poderia me fazer acreditar nisso". 

Governos petistas e megaprojetos

No início de sua segunda administração em 2007, o governo Lula lançou um grande programa de investimento em infraestrutura chamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), posteriormente continuado sob sua sucessora Dilma Rousseff. Com projetos que vão desde a pavimentação de estradas e rodovias até a criação de novas fábricas, o programa beneficiou trabalhadores e familias rurais. Mas no Pará, as hidrelétricas foram uma parte central do PAC, causando grandes transtornos. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingu, em Altamira, iniciada em 2010, foi um divisor de águas na relação do governo petista com os movimentos sociais rurais. O PAC também reiniciou a construção das eclusas de navegação da Barragem de Tucuruí, inauguradas em 2010, que são base para a hidrovia Tocantins-Araguaia.

Como os interesses do agronegócio na hidrovia não são apenas paraenses, mas nacionais, o destino do projeto provavelmente recairá na relação de forças dentro do novo governo. Em 2022, a campanha eleitoral de Lula rompeu com a abordagem "desenvolvimentista" que caracterizou os governos anteriores do PT, mantendo um compromisso com a inclusão social e o investimento público. As escolhas de Lula para o seu mandato, como Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente e Sônia Guajajara como a primeira ministra dos povos indígenas, refletem como seu governo vê o meio ambiente e a representação dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais como questões transversais. A reabertura do Ministério do Desenvolvimento Agrário dá esperanças para a retomada da reforma agrária e o reconhecimento dos territórios quilombolas e tradicionais, enquanto o Plano de Ação Interministerial de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que alcançou reduções históricas de emissões durante os mandatos anteriores do PT, volte a ser uma prioridade. O Fundo Amazônia, mecanismo fundado em 2008 para receber contribuições internacionais para proteger a floresta tropical, também voltou a funcionar depois que Bolsonaro efetivamente o fechou em 2019.

Marina Silva e Luiz Inácio Lula da Silva (Ricardo Stuckert / PR / CC BY 2.0)

Enquanto o governo Lula não tenha declarado sua posição sobre a hidrovia, os ativistas esperam que Marina Silva, que começou sua carreira sindicalizada com o movimento dos seringueiros no estado amazônico do Acre, consiga suspender o projeto. Com a vitória de com uma pequena margem, com ampla aliança de partidos, e o PT já fez concessões na forma de nomeações ministeriais para garantir uma base governável no Congresso. Do outro lado do corredor está a chamada bancada ruralista, que representa o agronegócio, que se tornou a maior bancada do Congresso, com 280 das 513 deputadas e deputados.

Como Cleidiane Vieira, da coordenação do MAB afirma: “os governos federais e estaduais mostram um capitalismo ‘civilizado’, mas ‘os lobos estão sempre lá’".

Na COP27, poucas semanas após a eleição, Lula propôs realizar a COP30 em 2025 na Amazônia. Desde então, Belém, a capital do Pará, desponta como candidata oficial com apoio da América Latina. Lula participou da COP27 com o governador do Pará Helder Barbalho, chamado de "Rei do Norte" por causa do poder de sua família e controle sobre a terra. Ele também fez parte da equipe de transição de Lula, e seu irmão Jader Barbalho Filho é o novo Ministro das Cidades. Sob o governo de Bolsonaro, Helder Barbalho se apresentava como um ambientalista promotor do desenvolvimento sustentável. Mas ele tem uma relação próxima com o agronegócio e os interesses dos latifundiários no Pará. Em uma entrevista coletiva em janeiro de 2023 ele disse que o projeto da hidrovia deve respeitar os direitos das comunidades tradicionais, mas também quer acelerar a detonação do Pedral de Loureço. Para os ativistas, a contradição de realizar a COP30 com um desastre como a hidrovia é agora uma alavanca estratégica contra a construção.

A campanha em defesa do Rio Tocantins não é contra o desenvolvimento em todas as suas formas, mas contra a exploração da região. Ribeirinhos e Extrativistas demandam reconhecimento e direitos de terra para os afetados, melhorias na infraestrutura local e a implementação de políticas sociais, econômicas e ambientais que fortaleçam os pequenos produtores que garanta a segurança alimentar, saúde e educação para a região.

Maria José Brito, da Associação dos Pescadores de Icatu, é irredutível quanto aos objetivos do movimento. Ela afirma: "Esta água é nossa. Não vamos deixar essa obra acontecer".


Claudia Horn é pesquisadora visitante na London School of Economics onde concluiu seu doutorado sobre justiça climática, cooperação internacional e conservação da Amazônia. Ela mora em Belém, Brasil.

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