“A gente tem que ser vigilante”

O governo de Lula está tomando medidas após a intensificação da invasão de territórios indígenas sob o governo de Bolsonaro. Para uma liderança munduruku, a luta territorial de base é fundamental.

July 10, 2023

 Alessandra Korap Munduruku (Cortestia de Alessandra Korap Munduruku)


Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.


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Situada no coração da Amazônia brasileira, a bacia do Rio Tapajós já foi tão extensivamente habitada pelo povo Munduruku que no século 19 a região toda recebeu o nome de Mundurukânia. O Tapajós ainda é profundamente marcado pela presença, cultura e política dos Munduruku, que hoje somam cerca de 13000 indígenas em mais de cem aldeias no Rio Tapajós e seus afluentes, no norte do estado de Mato Grosso e leste do Amazonas.

Os Munduruku são, em suas próprias palavras, um povo de tradição guerreira. Hoje, eles estão em guerra contra uma constelação de projetos de cunho extrativista e infraestrutural que ameaçam transformar seu território numa enorme zona de sacrifício em nome da extração de ouro e de madeira e da produção de soja e de energia hidroelétrica.

A liderança de Alessandra Korap Munduruku surgiu em meio à luta incansável dos Munduruku contra esses projetos. Alessandra vive na aldeia Praia do Índio, no Médio Tapajós, e ao longo da última década tem dedicado sua vida ao movimento de resistência Munduruku, que trava uma luta multifacetada pelas formas de vida e pelo território Munduruku. Essa luta inclui estratégias autonomistas de autodemarcação e fiscalização territorial concatenadas com incidência política para pressionar o governo a reconhecer todas as suas terras. Inclui também a formação de alianças com outros povos contra o garimpo ilegal de ouro e a resistência contra projetos de infraestrutura que ameaçam o território, como Estrada Ferroviária 170, apelidada de "Ferrogrão", que servirá sobretudo para escoar a soja do Mato Grosso pelo norte do país, Hidrovia Tapajós e até mesmo a Usina Hidrelétrica São Luís do Tapajós, cujo processo de licenciamento foi arquivado em 2016, mas que paira como ameaça sobre povos indígenas, ribeirinhos e tradicionais de toda a região. 

Falei com Alessandra em 8 de março de 2023, um mês antes de ela receber o Prêmio Ambiental Goldman por seu pela sua trajetória de luta junto aos Munduruku em defesa da floresta amazônica e das águas. Na entrevista, ela denuncia impactos do garimpo nas terras indígenas da Amazônia, fala sobre os obstáculos que ela e outras mulheres indígenas enfrentam dentro da política, explica a necessidade de continuar a luta e "não dormir" diante do governo de esquerda eleito no Brasil em 2022 e explica a luta incansável dos Munduruku pela possibilidade de existir enquanto povo. A conversa foi editada por questões de duração e clareza.

 Alessandra Korap Munduruku (Cortestia de Alessandra Korap Munduruku)


Ana Carolina Alfinito: No começo de 2023, o mundo acompanhou as imagens da devastação humana e ambiental causada pelo garimpo na Terra Indígena Yanomami. Você pode nos contar sobre essas imagens, e sobre como elas se relacionam com o que acontece dentro do território Munduruku e em outras Terras Indígenas?

Alessandra Korap Munduruku: Eu venho faz três anos acompanhando a situação na Terra Yanomami, e já faz mais do que isso que os Yanomami estão denunciando incansavelmente a invasão do garimpo dentro da terra deles. Eu fui para o território Yanomami, vi os Xamãs e as mulheres falando que eles estavam precisando de socorro, gritando por ajuda. As mulheres denunciavam que seu povo estava adoecendo, que elas estavam sendo ameaçadas, que suas netas estavam sendo usadas como prostitutas pelos garimpeiros, que ofereciam objetos como lanternas em troca de meninas, de crianças de 13, 14 anos. As associações Yanomami [como a Hutukara Associação Yanomami] já fizeram muitas denúncias sobre isso. Não é novidade.

Só que esses anos todos o governo tampou os olhos, fingiu que não estava vendo. E só agora que o governo Lula está tentando ajudar os povos porque ele sabe que o mundo todo está de olho no Brasil. Não é porque o Lula é bonzinho. 

Os rios e as terras Munduruku também estão muito machucadas por causa do garimpo. Quando vou para a aldeia, vejo as crianças tomando banho na água suja. O rio que agora é só lama. Imagina só que a gente precisa comprar água mineral na cidade para levar para a aldeia, a gente não consegue beber água que está dentro da aldeia por a água está toda contaminada por mercúrio devido ao garimpo.

Historicamente o povo Munduruku consegue tirar tudo que precisa de dentro do território — água, caça, peixe. A gente gosta de todo tipo de peixe que está no rio - de piranha, de peixe-cachorro, de tucunaré. Mas hoje a gente pega um peixe, vai na beira do rio, olha para ele e sabe que ele está contaminado com mercúrio, sabe que vai nos adoecer. Mas a gente vai comer mesmo assim porque não tem outro jeito. Não tem outra forma de alimento, e aí está contaminando todo mundo.

Os estudos da Fundação Oswaldo Cruz mostram que mulheres e crianças são as mais vulneráveis à intoxicação por mercúrio, que atinge todas as pessoas nas aldeias Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy do povo Munduruku, no oeste do Pará. A origem da contaminação é o garimpo de ouro, que cresceu quase 500% em áreas indígenas desde 2010 e teve amplo apoio do governo Bolsonaro. E com essas pesquisas a gente descobriu também que o leite materno da mulher está contaminando os seus filhos. Todo mundo sabe que o leite materno é importante para as crianças, que a amamentação é incentivada nos primeiros anos de vida. Mas e para nossos filhos, que estão sendo contaminados com mercúrio pelo leite? E é por isso tudo que a gente luta contra o garimpo, contra a mineração, contra o desmatamento.

Há três anos os três povos Yanomami, Kayapó e Munduruku formaram uma aliança contra a destruição do garimpo em suas terras — a Aliança dos Três Povos. A gente fez isso porque sabe que a destruição não está no território de um povo só, e sabe que a gente precisa estar junto para entender o que está acontecendo e para fazer estratégias de luta.

ACA: O que o povo Munduruku espera do governo Lula com relação ao garimpo, já que ele está fazendo uma ação de desintrusão da TI Yanomami? E o que a comunidade internacional deve fazer em relação às violações de direitos que estão embutidas na extração de ouro?

AKM: A gente espera que o governo do Lula seja diferente, mas a gente sabe que a gente não pode esperar tudo do governo, porque eles têm dois lados. Tem gente no congresso que é contra os povos indígenas e que é a favor do garimpo. A gente está vendo no caso dos parentes Yanomami que o governo federal está tentando retirar o garimpo de dentro da terra indígena, mas que tem outro lado, senadores, deputados, pressionando para que não tenha operação. Então não está sendo fácil. As lideranças estão sendo ameaçadas, perseguidas. E o governo tem que conversar com as comunidades. Precisa ter segurança para as lideranças. Precisa ter segurança com o povo que está na aldeia. Porque já teve ação de garimpeiro de queimar casa de liderança, e pode ser que aconteça de novo.

Mulheres Munduruku exigem demarcação de terras indígenas, 2022. (Mídia Ninja / CC BY-NC 2.0)

Os países que compram o ouro, as joias, precisam entender que isso tudo vem das terras indígenas. E que não existe nenhuma política de fiscalização desse ouro. Hoje nós estamos sofrendo por conta do garimpo, estamos sofrendo com as doenças do mercúrio, com a desnutrição, nosso povo está tomando banho e bebendo água suja do rio. Os países que compram ouro precisam fiscalizar, eles não podem comprar ouro ilegal. Os países que gostam de dizer que estão protegendo o meio ambiente precisam lembrar que existem os povos indígenas. Nós estamos aqui, colocando a vida e o corpo para defender o meio ambiente, porque o meio ambiente somos nós. Nós que estamos lutando e enfrentando aqueles que estão apontando armas para a nossa cabeça, invadindo a nossa casa, porque existem países comprando ouro e diamante. Não existe fiscalização. Então esses países também são responsáveis e precisam fiscalizar seus mercados e suas empresas.

ACA: No Brasil toda a mineração dentro de terra indígena é ilegal. Então, como que o garimpo avançou tanto dentro da terra de vocês?

AKM: Porque teve muito incentivo, inclusive do governo federal. O próprio [ex-presidente] Jair Bolsonaro incentivava o garimpo, então foi a oportunidade para os garimpeiros entrarem dentro das terras indígenas. Nossas terras foram invadidas muito rapidamente, sem resposta nenhuma do governo.

Só que os rios que passam pela nossa aldeia também passam pela cidade. Não somos só nós que estamos sendo contaminados — a população brasileira também está sendo contaminada pelo mercúrio. O garimpo legal ou ilegal, ele contamina do mesmo jeito, ele mata igual. Todas as pessoas que têm ouro, que tem aliança de casamento, que tem brinco, eles também estão contribuindo para a destruição, eles também estão incentivando o garimpo a matar o rio e a matar o povo.

Então a gente fica muito preocupado com isso. Não tem como parar o rio, que está vindo sujo e contaminado por causa do garimpo. E o mercúrio vai para todo o canto aonde o peixe vai.

ACA: Você poderia falar quais são as principais reivindicações dos Munduruku hoje para o governo do presidente Lula?

Alessandra: A nossa primeira e principal reivindicação é a demarcação das nossas terras tradicionais. A demarcação é em primeiro lugar porque tudo isso depende dela. Pensando nos filhos, nos netos, se não tiver essa demarcação, os projetos de que o governo chama de "desenvolvimento" vão ser a nossa morte. E a morte não só dos indígenas, mas também dos rios, dos animais e da floresta.

Segundo, é retirar os invasores do território, tirar os garimpeiros e fiscalizar para que eles não voltem a entrar. Hoje, a fiscalização quem faz é o movimento de resistência Munduruku. Isso é muito perigoso para quem participa. É preciso ter apoio do estado, é obrigação do estado.

E não é suficiente só tirar os invasores, é preciso também trazer política pública dentro das comunidades. Nossos filhos precisam de educação. Precisamos de um posto de saúde, de uma estratégia do estado para cuidar da nossa saúde, pois todo mundo está adoecido de mercúrio. Precisamos de espaços de cuidado e de cura. Estamos buscando formas de viver mais, de não morrer assim de forma precoce.

ACA: Porque esse ano 2023 é chave para a demarcação de Sawré Muybu, um território Munduruku no estado do Pará?

AKM: Existem muitas terras indígenas que ainda precisam ser demarcadas. Para a gente, a demarcação da terra Sawré Muybu, que fica perto de Itaituba, é prioritária e urgente. A gente sabe dos projetos grandes que ameaçam essa terra, como a usina hidrelétrica São Luís do Tapajó, a Ferrogrão, os portos para guardar soja, que querem construir para sustentar a exportação da soja.  

Para nós, Sawré Muybu é a terra que está segurando para o céu não cair. Se a gente desistir daquela terra, vai passar uma boiada em cima do nosso território. [Nota do editor: No auge da pandemia de Covid-19, o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles propôs aproveitar a situação sanitária para "passar a boiada" e mudar as regras de proteção ambiental.] A gente sobreviveu ao governo genocida do Bolsonaro, e agora o tempo está correndo. A gente tem quatro anos para pelar demarcação durante esse governo, e daí para frente não sabe o que vai acontecer. Sabe que tem muita gente que não gosta dos indígenas, que não quer saber de demarcação e nem da floresta, do rio, que está de olho em nossas terras. 

ACA: O que o movimento de resistência Munduruku tem feito para proteger seus territórios?

AKM: A gente faz fiscalização do território sozinho para retirar os invasores, a gente vem pra Brasília exigir a demarcação, a gente pressiona os nossos parentes que agora estão no governo, no Ministério dos Povos Indígenas. Estamos dizendo a eles que agora a hora é essa, que estão com o papel e a caneta na mão, é a hora de assinar o documento [para demarcar oficialmente nossas terras].

É importante pressionar o governo. A gente não quer dormir e achar que está tudo bem, porque não está. Enquanto houver invasão dentro do nosso território, enquanto a demarcação não estiver cumprida, que é nosso direito, a gente vai sim pressionar.

ACA: Em maio de 2021, após pressão do povo Munduruku, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e Amazon Watch, a mineradora multinacional Anglo American se comprometeu formalmente em retirar da Agência Nacional de Mineração (ANM) 27 requerimentos aprovados para a pesquisa de cobre em territórios indígenas. Qual foi o significado dessa conquista para o povo Munduruku e por que a mineração em larga escala, industrial, não deve ser liberada na Amazônia?

AKM: O mundo todo está de olho agora no Brasil. O mundo todo quer discutir sobre mudanças climáticas. Mesmo assim, ainda insiste em fazer uma mineração dentro da terra indígena. Mesmo assim quer liberar a mineradora dentro das terras indígena, como o PL 191. [Nota do editor: Apresentado pelo então governo federal ao Congresso nacional em 2020, Projeto de Lei 191 libera a mineração industrial e outros empreendimentos em terras indígenas]. Mas eles esqueceram que nós resistimos a mais de quinhentos e vinte e três anos. Nosso povo resiste, e sempre falamos: a gente não vai sair daqui. A gente vai ficar.

Nós acreditamos no mundo espiritual e esse mundo nos protege, e a gente vai proteger também o mundo espiritual. E a gente vai dizer, que qualquer empresa que for entrar dentro do nosso território, a gente vai lutar.

Nós temos sangue de guerreiras, nós temos sangue ancestral, sangue do rio, sangue das florestas. A retirada dos interesses minerários da Anglo American que incidiam pelo nosso território foi uma vitória muito importante para nós. Mas sabemos que precisamos ficar sempre vigilantes.

ACA: Como você diria que a luta pelo território e pela forma de vida do povo Munduruku convergem com a luta pela luta global pela Amazônia e pelo equilíbrio climático?

AKM: Antes de sair da minha aldeia eu achava que a luta pelo território era uma luta só nossa. Mas aí eu comecei a sair, a viajar, e percebi que a minha luta pela minha casa é parte fundamental da luta global pelo meio ambiente e sobretudo pelo clima. No meu território ainda tem muita floresta. Ainda tem o rio. Ainda existem os peixes, ainda existe cachoeira. Então, como o mundo todo vai falar sobre mudanças climáticas enquanto o mundo todo está contribuindo para o desmatamento. O mundo está comprando soja, está comprando gado, está comprando ouro, tá comprando a madeira. Se vai falar sobre equilíbrio climático, o mundo precisa falar dos povos indígenas, precisa falar da gente. Somos nós que estamos lá todo dia.

E agora eles dizem "vamos ajudar os povos indígenas com créditos de carbono". Mas porque não ajudam os povos de outra forma? Porque não ajudam a garantir nossos direitos? Porque não tiram os invasores do território, porque não pressionam pela demarcação do território indígena? Isso tudo já está na constituição e nas leis internacionais. Quando nos negam o direito à demarcação de nossas terras, também estão negando a possibilidade da floresta ficar em pé. Mecanismos como o REDD tem um risco grande de mudar a nossa cultura, de mudar a forma como a gente usa a floresta, onde a gente pode fazer roça, onde pode plantar. A gente quer viver em paz.

E as mudanças climáticas também estão mudando nossa forma de vida. Estão mudando o tempo da caça, da pesca, o tempo de cheia e seca do rio. A gente sabe que todas essas mudanças estão ligadas a isso que chamam de mudanças climáticas globais. E a gente quer preservar, e que por isso os governos e os brancos precisam fazer o que a gente está pedindo, respeitar nossos direitos, demarcar nossos territórios, pára de comprar ouro, pára de desmatar.

ACA: Hoje é dia oito de março, Dia Internacional da Mulher. Conta um pouco sobre como é seu dia a dia enquanto liderança mulher, mãe, indígena da Amazônia.

AKM: O meu trabalho é principalmente defender o território e defender os direitos do nosso povo. O meu caminho não é só meu, é de muitas mulheres Munduruku que lutam.

Depois que eu comecei a andar para fora, sair da minha aldeia, eu percebi que não era só o nosso povo que estava sendo violado pelos ataques, ameaças. E comecei a perceber que nós, mulheres, não poderíamos ficar caladas. E não é fácil ser uma mulher liderança no meio dos caciques. Porque uma vez que de repente você começa a falar, a ter voz, isso começa a incomodar muita gente. Mas ao mesmo tempo algumas lideranças começam a reconhecer a força da nossa luta. E eu tive muito parceria de pessoas como Maria Leusa Munduruku, que foi uma guerreira que sempre me incentivou a lutar. Ela me incentivou a falar, a não desistir nunca.

Eu não poderia ficar calada, assim como eu não poderia só falar de mim. Eu preciso falar do povo, porque é o meu povo que depende do rio, que depende do território, que depende disso pra viver. Essa luta é a luta do meu povo, eu sou só uma das vozes dentro dela. O povo Munduruku sempre foi guerreiro e lutador e nunca abaixou a cabeça e eu como mulher não poderia ser diferente.

Teve barreira? Teve. Mas hoje existe um reconhecimento das lideranças mulheres. Existe respeito por nós na tomada de decisões. Todas as lideranças conversam muito para tomar qualquer decisão. A gente pergunta um para o outro. Alguém me pergunta alguma coisa e eu fico na dúvida e pergunto pra outra pessoa, sempre tem alguém que orienta, e alguém sendo orientado. E foi isso, esse processo, que me tornou uma liderança. Não uma liderança acima do povo ou de outra liderança, mas sim uma liderança do meu povo, junto com meu povo, com pé no chão. Em todas as brigas, todas as lutas, eu sempre tive meus pés no chão, no território. 

Isso incomodou o governo, as empresas, incomoda os inimigos. Eles nunca conseguiram me silenciar, eu me posiciono, eu falo, eu grito, e se for para brigar mesmo eu brigo. Eu nunca fui de abaixar a cabeça, sempre fui uma pessoa muito persistente.

Hoje, por conta disso, dessa história e dessas coisas que eu aprendi, eu tenho a chance de trabalhar ao lado das lideranças Munduruku e também de lideranças de outros povos, dos mais velhos, que ensinam para o mundo, como Davi Kopenawa, cacique Megaron, cacique Raoni, Ailton Krenak.

Quando eu vou para as aldeias, as crianças e a juventude vêm conversar comigo. Eles me falam: “Alessandra, eu não sabia o que era lutar. E quando eu te ouço, quando eu te vejo, me faz entender que eu também sou capaz”. E eu fico muito feliz de ouvir isso. E eu fico muito orgulhosa de saber que eu não fiquei só em casa parada para cozinhar para o marido, os filhos, que eu não fiquei só fazendo o que os homens mandam fazer. Eu fui aquela que levantou e disse "eu também sou capaz de estar nos lugares onde os homens estão, e até de ultrapassar".

E na minha visão é sempre dialogar e escutar os mais velhos. Eu nunca decidi sozinha. Sempre que tive dúvida, eu consultei com meu povo. E isso me fortalece muito. Porque a visão dos brancos é uma coisa — é o individual, é você passar por cima do outro. E eu não. Eu sempre fui ensinada que onde a gente for pisar, tem que saber onde está pisando, e pisar no chão para não machucar ninguém.

E é o que a gente chama de coletivo. O coletivo não é só pensar nas mulheres, mas pensar no futuro dos nossos filhos, dos nossos netos, pensar também nos ribeirinhos, quilombolas, nos outros povos que também precisam ter voz.

E eu não quero ser a única voz. Nós precisamos de muitas vozes e que a gente possa juntar essas vozes, segurar na mão das mulheres, crianças, pajés, caciques, parteiras, idosos, sentar e ir para cima, sem desistir. Porque a gente vai vencer.

ACA: Alessandra, a sua militância junto ao povo Munduruku foi internacionalmente reconhecida em abril de dois mil e vinte e três pelo Prêmio Goldman, que você recebeu pela sua luta junto ao povo, dessa forma coletiva que você explicou agora. Cinta para mim um pouco sobre as vitórias do povo Munduruku nesses últimos anos, sobre que vocês conseguiram através da luta e organização coletiva de vocês.

AKM: A primeira vitória do povo foi contra a hidrelétrica de São Luís do Tapajós. [Nota do editor: o projeto da barragem, suspenso em 2016, teria inundado parte do território de Sawré Muybu]. A gente fez protocolo de consulta, fez a nossa autodemarcação, que significa enfrentar os madeireiros, os garimpeiros, a gente saiu da nossa casa e foi pra Brasília, para mostrar para os governantes que nós existíamos e estávamos lá, que aquela é a nossa casa e que a gente não vai entregar a nossa casa. 

Rio Tapajós (KMUSSER / CC BY-SA 3.0)

E aí tudo que a gente fez na época do governo Bolsonaro foi a negação, quando ele começou a dizer que não ia demarcar nem um cm de terra. A gente já sabia que ia ter um desafio muito grande em defender o território. Porque os invasores queriam isso — queriam ouvir de um presidente que ali poderia entrar a qualquer hora, e que o governo não ia fazer nada. E a gente teve que ir pra frente.

Veio a pandemia. A gente ficou sozinho, sem o governo. O governo dizia que a pandemia era uma gripezinha. E os garimpeiros foram entrando no territírio. A gente teve que a assumir toda a linha de frente da defesa territorial. Decidimos não recuar, decidimos ir para frente e resistir coletivamente.

Nesse mesmo momento, descobrimos que haviam vários processos de mineração que se sobrepunham ao nosso território. Uma das empresas era Anglo American.

E tínhamos muitas lutas, na educação, na saúde. Projetos com água, porque descobrimos que nosso povo estava doente por causa do mercúrio, por conta da malária, por conta da doença dos não-indígenas. E a gente decidiu pedir ajuda. Porque a gente viu que no Brasil, no governo brasileiro, a gente não tinha apoio. E que havia outros países também envolvidos na destruição do nosso território. Então a gente decidiu gritar também para fora. Apib, Coiab, meu povo, a gente foi para fora do Brasil fazer a denúncia, usamos as redes sociais, e isso foi importante para que as pessoas de fora nos acompanhassem e vissem a nossa luta. A comunicação foi uma arma importante.

E nesse processo a gente fez uma série de denúncias contra a Anglo American dizendo que não queríamos mineração no nosso território, que o que eles estavam fazendo era ilegal. O meu papel era levar informação para dentro do território, sobre o que era essa mineradora, sobre o que ela estava querendo, e ao mesmo tempo levar as nossas demandas para fora. A Anglo American então declarou publicamente [em 2021] que desistiria dos interesses minerários dela dentro das terras munduruku. Foi uma vitória importante para nós, foi uma consequência da nossa luta.

ACA: Você, além de ser uma liderança, é mãe de dois meninos adolescentes e sempre fala da importância de trabalhar junto aos jovens que vivem nas cidades e nas aldeias. O que você gostaria de construir para eles e para outros jovens e crianças Munduruku, por meio da sua luta?  

AKM: Eu sempre falo para o jovem que nós não podemos abaixar a cabeça. A gente precisa estar de olho em todas as armadilhas que vêm de fora para enganar nosso povo. E tem muita armadilha. Quando os primeiros invasores do território chegaram, eles foram distribuindo coisas, espelhos, roupas, a bíblia. E o que eles tomaram? O território. E restaram poucos Munduruku.

Os jovens precisam ficar de olhos abertos, ficar espertos, porque muita gente vai querer chegar para enganar, que nem está acontecendo hoje com as pessoas e empresas que chegam querendo tirar ouro, madeira, créditos de carbono. Por isso a gente vai continuar essa luta e o jovem jamais pode abaixar a cabeça por migalha e por qualquer coisa que venham a oferecer em troca no nosso território. A gente tem que ser vigilante.


Ana Carolina Alfinito é advogada e socióloga e consultora jurídica Brasil da Amazon Watch.

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