Cenários de isolamento e desastre no Brasil

Se para os trabalhadores da mineração, obrigados a manter a produção, o isolamento é inacessível, para as famílias que tiveram suas casas destruídas em 2015, o isolamento é agora uma condenação que a ameaça imposta pelo vírus potencializa.

September 30, 2020

Visita à Bento Rodrigues (Romerito Pontes / Flickr)

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na edição impressa do NACLA.

Na tarde de 5 de novembro de 2015, a ruptura da barragem de rejeitos denominada “Fundão”, de responsabilidade da mineradora Samarco S.A., uma joint venture controlada pelos grupos Vale S.A. e BHP, gerou um tsunami de 55 milhões de metros cúbicos de lama carregada de minério de ferro em Mariana, Minas Gerais. O impacto imediato do rompimento destruiu residências, infraestrutura urbana, patrimônios públicos e históricos, unidades de conservação, além de matar 19 pessoas e deixar centenas de desabrigados. Ao longo de 42 municípios, milhares de pessoas tornaram-se atingidas, categoria política importante no processo político histórico de lutas sociais por ressarcimento dos bens materiais, visto que de fato, não há mitigação possível em valores monetários para tudo aquilo que se perdeu.

Atualmente, em muitos desses locais devastados, para aqueles que não tiveram suas casas arrasadas e optaram por permanecer vivendo nos territórios, os ventos que sopram trazem uma poeira marrom, fina e pegajosa, que dá a tonalidade à paisagem, impregnando nos corpos e lesando-os. Em Barra Longa, por exemplo, segundo município a ser atingido, a lama cruzou o centro da cidade destruindo prédios públicos e casas. A sede do município, com pouco mais de 5 mil habitantes, foi amplamente atingida pelo desastre. A lama sedimentada tornou-se uma poeira que atualmente - quase cinco anos após o rompimento - é motivo para uma interminável luta dos atingidos para que a empresa retire a lama das ruas do munícipio.

A poeira, os vestígios e as ruínas são ali, fantasmas de histórias desfeitas num piscar de olhos dentro de uma tragédia continuada. Como é dito na primeira frase do livro Arts of Living on a Damaged Planet, os ventos do Antropoceno carregam os vestígios e sinais de modos de vida passados que assombram paisagens do presente. Projetado no livro para o exercício de estranhamento que transmite um senso de assombração, pelos ventos há o retorno a múltiplos passados que tornam possível entender o presente. A arrogância de conquistadores e corporações, apontam os autores, torna incerto o que podemos legar às nossas próximas gerações num planeta descrito como danificado.

No mês de março de 2020, os ventos do Antropoceno trouxeram para Mariana, em Minas Gerais, uma nova catástrofe de escala global: a Covid-19. Vivendo sob o contínuo desastre da mineração, os movimentos globais acelerados pelo capital trouxeram o vírus que tem sido chamado de “inimigo invisível”. Se para os trabalhadores da mineração, obrigados a manter a produção, o isolamento é inacessível, para as famílias que tiveram suas casas destruídas em 2015, o isolamento é agora uma condenação que a ameaça imposta pelo vírus potencializa.

Ao caminhar pelas ruas dos distritos devastados, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, o silêncio ecoa pelos territórios que um dia já foram repletos de vida. As ruínas das edificações de outrora nos remetem a um cenário de pós-guerra. Nascidos em Minas Gerais, um estado que carrega a mineração no nome, e realizando nosso trabalho em comunidades atingidas por desastres da mineração, nos sentimos solitários diante da imensidão que se tornou esse rastro de morte marrom. Nestes territórios temos a devida dimensão do poder de destruição desse que é o maior desastre-crime minerário decorrente de rompimento de barragem no mundo. O silêncio, que ultrapassa os limites do que já foi uma comunidade, é encontrado no processo vivenciado pelos atingidos. O processo de reparação desse deslocamento forçado é repleto de silenciamentos e opressões acerca da existência e dos modos de vida que preenchiam a comunidade.

Uma nova crise

Uma pesquisa chamada Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH), publicada em 2019, foi mantida em sigilo da população por vários meses pela Fundação Renova, entidade criada pela Samarco S.A. que é responsável pela reparação dos danos causados pelo rompimento.. O relatório aponta que “existe um perigo para a saúde das populações expostas aos contaminantes definidos através da ingestão, inalação ou absorção dérmica das partículas de solo superficial e/ou da poeira domiciliar contaminadas”. Na poeira coletada nas residências foram encontradas concentrações de cádmio, níquel, zinco e cobre acima dos limites de segurança vigentes na legislação brasileira. Também em amostras de sedimento e solo superficial foram encontradas concentrações de cádmio, destacado como um metal cancerígeno, até 17 vezes superiores aos valores de referência utilizados na pesquisa com base em padrões nacionais existentes, às quais as populações locais estão expostas desde a ocorrência do desastre.

A poeira da mineração se relaciona ao aumento no número de problemas respiratórios e dermatológicos na população atingida. Dentro de uma atividade que historicamente debilita sistemas respiratórios em decorrência do pó de minério inalado, o contexto atual nos leva ao questionamento: como a Covid-19 afeta a saúde dessas populações? Nas empresas e megaempreendimentos ligados à mineração a atividade continua operando mesmo com a Pandemia, o que levou a uma onda de casos em comunidades já afetadas pela atividade. Em Mariana, munícipio onde ocorreu o que chamaremos de “desastre”, como nomeia Norma Valêncio (2013) em “Sociologia dos Desastres”, e crime, visto seu processo jurídico em andamento, o número de trabalhadores das mineradoras e terceirizadas da atividade testados positivamente tem crescido rapidamente. Além dos riscos aos quais já são expostos diariamente, a continuidade da atividade minerária aumenta a tensão em relação à possibilidade de contaminação destes corpos já pertencentes ao grupo de risco por complicações pulmonares dado o cotidiano de exposição nas minas. A situação é ainda mais crítica considerando a precariedade do sistema de saúde no município, obrigando pacientes em estado mais grave a ser transferidos para outras cidades que disponham de leitos vagos de Unidades De Tratamento Intensivo (UTIs).

Nesse contexto de vulnerabilidade, a disseminação da Covid-19 no município de Mariana nos suscita a repensar as estruturas do neocolonialismo e do capitalismo periférico, a partir dos efeitos que emergem com a chegada do vírus em distritos já explorados e atingidos por desastres da mineração. Os efeitos da pandemia evidenciam o desnivelamento social, refletem desigualdades estruturantes de raça, classe social e território, dificilmente equalizadas nas políticas assistenciais que seguem protocolos globais de saúde. A disciplina dos corpos e das emoções em quarentena é distribuída de forma dramaticamente desigual. As estruturas locais de desigualdade, tão comuns ao Brasil, intensificam as consequências da Covid-19.

Segundo dados recentes, o Brasil se tornou o segundo país com maior número de casos e óbitos no mundo. As medidas sanitárias adotadas pelo Governo Federal, afastadas das recomendações da Organização Mundial de Saúde, são em grande parte responsáveis por isso. O atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, desde o início da Pandemia adota uma postura negacionista em relação à seriedade da Covid-19. Em meio ao colapso do sistema de saúde público em vários estados em decorrência da pandemia, dois ministros da saúde foram demitidos e, até a escrita deste ensaio não há um ministro titular na pasta da saúde e nem uma coordenação nacional para realizar o enfrentamento da doença.

Desde seu primeiro pronunciamento, Bolsonaro estimula a população a não aderir ao isolamento. O então presidente já afirmou ser apenas uma “gripezinha“ e que ”está havendo uma histeria”, disse “não sou coveiro” e falou “e daí?“ diante do crescente número de contaminados e mortos. Enquanto esses números cresciam, ele passou a defender uma estratégia de “isolamento vertical“, alegando que só idosos poderiam morrer e que era necessário não deixar a economia ser afetada. Além disso, tal qual Donald Trump, Bolsonaro insiste que o uso da hidroxicloroquina é capaz de curar a Covid-19, mesmo sem haver tal comprovação científica. Afirmando que as medidas de isolamento são um complô de governadores e prefeitos para atingir seu governo, Bolsonaro incentivou apoiadores a invadirem hospitais para filmarem leitos de UTI que estariam supostamente vazios. 

Diante desse contexto, analisamos as experiências vivenciadas nos corpos e sensibilidades coletivas de moradores e comunidades previamente vitimadas de crimes socioambientais, bem como dos trabalhadores da mineração, diante de estruturas de desigualdade, racismo ambiental e saúde pública que, apesar de serem anteriores ao Covid-19, podem ser vistas de forma ampliada dentro dessa situação. Demonstraremos como os efeitos - bem como as formas de gestão da pandemia - têm se dado dentro de um quadro mais amplo de funcionamento do capitalismo neoliberal e colonial contemporâneo.

O isolamento dos atingidos

Um laudo técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aponta que 1.469 hectares de vegetação foram destruídos com a avalanche de rejeitos de mineração. O solo afetado apresenta desde então uma camada na parte superior que o torna praticamente inerte. Com o desastre-crime, centenas de hectares de área de agricultura foram perdidos e, numa reação em cadeia, o rejeito de minério percorreu 670 km de rios e afetou toda a bacia hidrográfica do Rio Doce - um dos principais do país -, até chegar ao mar. Por onde passou aniquilou a vida existente de peixes, algas, micro-organismos, contaminou animais - silvestres e domésticos - que dependiam de sua água, além de legumes, hortaliças e frutas.

São muitas as demandas e especificidades em torno de se isolar. Os atingidos, que tiveram sua comunidade, casa e sustento devastados por esta onda de lama de rejeitos, não possuem condições de retomar à vida cotidiana. Uma parte deles vive desde o desastre de novembro em 2015 na área urbana do município de Mariana. Os hábitos de vida foram totalmente transformados. As casas não possuem quintais onde se possa cultivar alimentos, os móveis já não são os mesmos, nem os objetos aos quais se passou a vida familiarizados. São casas sem o conforto do sentimento de acolhimento e pertencimentos para essas famílias; são casas sem história. Os parentes já não moram ‘logo ali’ e as distâncias passam a interferir profundamente na dinâmica da vida. Os atingidos afirmam ainda que não há mais a liberdade como antes, dada as notícias de furtos e perigos da cidade, e seus modos de vida urbanos.

Visita à Bento Rodrigues (Romerito Pontes / Flickr)

A construção do reassentamento destas comunidades, ao qual a empresa foi obrigada pela justiça a realizar, continua a passos curtos, sem previsão de ser concluída dado os constantes adiamentos concedidos pelo poder judiciário. Enquanto isso, as famílias se sentem presas em moradias temporárias na cidade, que não reconhecem como lar, sem ter a autonomia sobre suas próprias vidas. Para elas, o isolamento já dura mais de quatro anos. Como pontuou uma moradora de Paracatu de Baixo, Rosária Ferreira, durante o Seminário de 3 anos após o rompimento, organizado pela Cáritas Brasileira, em novembro de 2018: “eu falo todo dia gente, é como se eu estivesse assistindo um filme e parado, deu um pause para fazer a pipoca. Eu já comi a pipoca e não consigo dar o play. A vida de todo mundo está parada”. E conclui “essa seria a reparação justa: as pessoas voltarem a ter suas vidas de volta. Ninguém quer mais do que isso”.

O cotidiano de isolamento que já havia sido provocado pelo desastre, passa a ser potencializado pela pandemia e o respectivo contexto político de inoperância do governo federal perante a crise. Como afirma a pesquisadora Gabriela de Paula Marcurio, em texto no blog Confinaria, os atingidos e atingidas se isolam nesses espaços onde não se reconhecem, onde veem outras ruas e outros vizinhos. São pequenos espaços, sem quintal, sem roça e sem porcos, galinhas e outros bichos. “Não se pode voltar para casa por causa da lama. Não se pode sair de casa por causa do vírus.”

Se já não há os quintais, com hortas e pomares, tampouco a pesca no rio ou as visitas de parentes e amigos, relações (humanas e não humanas) que fazem parte da vida nas comunidades rurais, o cotidiano se modifica. Deslocados pelas tragédias da mineração e isoladas pelo Covid-19, o isolamento da Covid ganha novas proporções e a vida se baseia nos "provisórios" que se prolongam indefinidamente.    

Vivendo na cidade, os atingidos são considerados - pelos moradores de Mariana - privilegiados em virtude da manutenção à qual a empresa é obrigada a manter. Além dos boatos que circulam em relação às indenizações que receberam, que os leva a um falso patamar de ‘ricos’ em um contexto de precariedades. Por isso, os atingidos que já haviam sido expulsos de seus lares, se isolam nas casas provisórias, dentro de uma cidade que lhes é hostil. “Estamos trancados dentro de um mundo diferente. Agora estamos isolados da doença, mas antes estávamos isolados das pessoas”, aponta Luzia Queiroz, uma das atingidas que vive em Mariana nas casas temporárias alugada pela empresa mineradora enquanto aguarda o reassentamento em entrevista ao jornal TAB.

A jovem moradora do distrito de Gesteira, Mirella Lino, narra ao jornal TAB que “o pior está sendo ler as notícias. Principalmente pela posição desse presidente do país [Jair Bolsonaro], que é muito irresponsável. As declarações dele de que não importa se morrerem cinco mil, sete mil pessoas, tem que salvar a economia?”. Segundo o depoimento, ela desenvolveu um quadro crônico de depressão após o rompimento da barragem e agora com o isolamento imposto pela pandemia, seu estado piorou. A atingida ainda questiona a insistência do Presidente Jair Bolsonaro em priorizar a economia: “vindo do contexto que eu vim, eu só não morri porque não era para ser a hora, mas sei muito bem o que é ser esmagada pelo lucro, por causa da economia. Estou nessa situação há quatro anos”.

Na cidade de Ouro Preto, vizinha à Mariana, no mês de maio, mais famílias foram afetadas pela atuação da mineração em período de Pandemia. Quando o contágio da Covid-19 já era considerado comunitário na região - com cerca de 14 casos confirmados e mais de 250 pessoas sendo monitoradas em Mariana -, a mineradora provocou mais um deslocamento compulsório de 61 famílias devido à elevação do risco de rompimento de uma outra barragem de rejeitos, a barragem do Doutor.

Conforme o Cadastro Nacional de Barragens de Mineração, elaborado pela Agência Nacional de Mineração (ANM), a  barragem que ameaça romper possui 77 metros de altura e abriga cerca de 37 milhões de rejeitos de minério de ferro. Todas as pessoas que viviam na chamada Zona de Autossalvamentoperímetro de 10 quilômetros abaixo da barragem e que não teriam tempo de salvar suas vida em caso de rompimento, seguiram o itinerário de outras centenas de famílias atingidas pela mineração no estado. Foram deslocadas para imóveis alugados pela empresa na sede municipal. Mesmo em pleno período de isolamento e com todos os riscos de contágio, a empresa optou por promover novamente este duplo isolamento às famílias, que passaram a viver em locais desconhecidos.

A empresa Vale S.A., proprietária da barragem, ao optar por tal tipo de atuação, em período tão delicado e sem estabelecer diálogo claro com a população, promove o agravamento das doenças mentais destas famílias, que há anos vem sendo provocada pela atividade. “O que mais me incomoda, como moradora, é a falta de respeito com que a Vale trata os moradores. Devemos lembrar que quando a Vale chegou em Antônio Pereira, a comunidade já existia”, diz Maria Helena Ferreira, moradora de Antônio Pereira, ao Jornal A Sirene, edição junho 2020, lembrando que a pré-existência da comunidade à presença da Vale, e ainda pontua que “é bom lembrar que a Vale quebrou nosso isolamento social, muitos moradores removidos fazem parte do grupo de risco. O vazio deixado pela remoção dos moradores, a Vale nunca irá conseguir reparar. Infelizmente, a Vale nos trata como números, se esquece que somos seres humanos, dotados de sentimentos e emoções”.

O processo de (des)territorialidade mais um vez toma proporções violentas em um “evento crítico“, como nomeia a antropóloga Veena Das (1995) no livro Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. Essa experiência, como define a autora, expressa a agressividade das instituições ao produzir uma reação que se torna necessariamente um ponto de inflexão. Deste modo, o evento crítico, o rompimento da barragem que destruiu comunidades, matou pessoas, rios e modos de vida, carrega em si a ambiguidade de parecer extraordinário e cotidiano ao mesmo tempo.

“A Mineração não pode parar”

Se nos grandes centros urbanos e financeiros do planeta a Covid-19 colocou as sociedades contemporâneas sob um aparente isolamento, a redução da atividade humana promoveu uma melhora na qualidade do ar, o que não é visto em Mariana onde a poeira decorrente das atividades de mineração são mantidas e profundamente sentidas pelas populações que vivem ao redor das minas e pelos trabalhadores que respiram diariamente esse pó metálico imperceptível. Os caminhões e ônibus, pertencentes às empresas de mineração, continuam seu percurso, subindo e descendo em direção às minas de minério de ferro que seguem em atividade na região, levantando a poeira marrom que são a marca das cidades mineradoras ou o fantasma do desenvolvimento desenfreado que caracteriza o que se convencionou como Era do Antropoceno.

"Quanto vale a vida indigena?" na sede da companhia Vale em Rio de Janeiro (Mídia Ninja / Flickr)

Todos os dias às 7 horas da manhã e às 18 horas os trabalhadores uniformizados vão ou voltam das minas, muitas vezes sem máscara e sem proteção. Com o aumento dos casos de Covid-19 na cidade, a pressão sobre a prefeitura para que houvesse uma a paralisação das atividades foi intensa. Entretanto, o Prefeito, em uma transmissão pública no canal da prefeitura no instagram pontuou que a empresa havia avisado que ‘demitiria em massa se precisasse parar as atividades’, chantagem recorrente nas relações economicamente dependentes entre mineração e países do Sul Global.

Desde o início da pandemia no Brasil, o lema decretado pelo Presidente Jair Bolsonaro, em diversas entrevistas é “a economia não pode parar“. Assim, no dia 28 de março, quando a pandemia começava a se agravar no país, o governo federal definiu a mineração como sendo uma “atividade essencial“ e que, portanto, não poderia ser interrompida devido ao surto de Coronavírus.

Se em anos anteriores, a mineração já havia sido considerado uma atividade de utilidade pública no país, eximindo-a de restrições ambientais, agora ela foi promovida a um patamar de atividade essencial para sobrevivência humana, assim como os hospitais e serviços de abastecimento de alimentos. A nova definição da atividade foi sucedida pela declaração do presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral que alega que “paralisar as operações do setor da mineração teria um efeito drástico no aumento de risco para suas instalações”. Deste modo, a epidemia chegava ao munícipio para o setor como um risco que se direciona ao setor produtivo e não aos trabalhadores e moradores das regiões extrativistas.

A frase carrega uma racionalidade já bastante evidenciada por populações atingidas e ativistas que questionam este modelo da atividade econômica. Após o rompimento da barragem em 2015, até então sem precedentes, a pressão incisiva que prevaleceu nos municípios atingidos sempre foi para que a mineração permanecesse operando, visto a dependência do município em relação ao extrativismo industrial. Poucos dias após o rompimento, com os atingidos ainda sem casa e com vítimas ainda não encontradas em meio ao mar de lama tóxica, já havia protestos na cidade com pessoas pedindo o retorno das operações da empresa. Em sua maioria, familiares dos trabalhadores da mineração e representantes do comércio local, que também espalhavam cartazes pela cidade com a campanha #VoltaSamarco. Nos últimos anos, com a paralisação das atividades da Samarco S.A., decorrente do desastre-crime socioambiental, houve uma severa crise econômica na região.

Retomando o contexto de Pandemia, a cidade manteve a atividade minerária, porém os boletins diários que demonstram os números da contaminação apontam o agravamento da situação dia a dia. O isolamento em Mariana começou entre os dias 12 e 13 de março, sendo o primeiro boletim emitido no dia 17 de março. Já logo na primeira semana, em 19 de março, foi confirmada a circulação do Coronavírus na cidade. Segundo boletim, tratava-se de uma pessoa que havia viajado para fora do país. Porém ao final de março (30) divulgaram a notícia do primeiro óbito. Era um trabalhador da Fundação Renova, de 44 anos que deixou mulher e filhos.

Em abril os números de pacientes confirmados subiram de 2 para 18 casos. Em maio a primeira semana manteve esse padrão. Entretanto, na segunda quinzena os casos subiram de par em par e os casos monitorados de forma mais intensa. Em 21 de maio, Mariana atinge 51 casos confirmados e mais 2 óbitos, sendo um total de 3 óbitos. No dia seguinte mais um óbito, totalizando 4 e 65 pessoas com testagem positiva para Covid-19, e o cenário começou a se agravar. A partir deste ponto a pressão da cidade levou a Prefeitura de Mariana a obrigar as mineradoras a arcar com a testagem em massa de seus funcionários.

O secretário de saúde e a médica responsável pelas medidas relativas ao Covid-19 fizeram um pronunciamento onde alertavam à população que dada a testagem em massa realizada pelas empresas os números cresceriam exponencialmente nos próximos dias. Em 23 de maio, eram 70 casos e um novo óbito, totalizando 6 vítimas. No dia seguinte mais um óbito em investigação e 80 casos confirmados, sendo 36 do “setor privado”, como passaram a denominar os funcionários contaminados trabalhadores das mineradoras.

Chegando às centenas, em 26 de maio, eram 104 casos confirmados e mais um óbito em investigação. Ao final do mês (31) eram 239 casos confirmados e 7 óbitos. A prefeitura permaneceu com a política de manutenção da atividade, assim como o governo federal que manteve a atividade como “essencial”. Desta maneira, uma cidade com cerca de 50 mil habitantes e pouquíssima infraestrutura de saúde possuía um número assustador de casos e mortes pelo vírus. Ao fim do mês de junho (30) eram 591 casos confirmados e 9 mortes, entretanto, o número de testagens na cidade era e é bastante reduzido, portanto podemos deduzir que há uma subnotificação e que há muito mais infectados pelo Covid-19.

A precarização das condições de trabalho deste ramo chega a extrapolar a própria dificuldade da atuação em meio à uma Pandemia mundial. Os baixos salários e os riscos de acidentes com maquinários ou desastres como o rompimento de barragens ‘sob as cabeças dos funcionários’ já são uma realidade diária destes trabalhadores precarizados. Esta precarização eleva estes funcionários ao status de peças substituíveis e que devem permanecer trabalhando, mesmo em meio a uma pandemia mundial sem precedentes, e que caso sejam contaminados, ou soterrados por rompimentos, serão substituídos por outras centenas de mão de obra que se encontram nessas regiões do Sul Global dispostas ao risco em função da necessidade de sobrevivência.

Se em algumas regiões do planeta, a emergência do vírus e a proximidade da morte que ele representa fez emergir um novo padrão de costumes - como a prática do distanciamento físico para frear sua disseminação -, na periferia capitalista sede do colonialismo extrativista a pandemia surge prioritariamente como um risco para acionistas e executivos e se espalha no corpo dos trabalhadores da atividade para os quais o isolamento não é uma possibilidade. Como reflete Judith Butler, em “Dossiê Boitempo Covid-19“ atualizando a concepção dos corpos passiveis de luto presente no livro “Quadros de Guerra”, o vírus por si só não discrimina, mas ele reinscreve a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas não valem o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte.


Leonardo Vilaça Dupin, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente trabalha em uma assessoria técnica a comunidades atingidas por desastres da mineração.

Beatriz Ribeiro Machado, doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa atualmente os processos de deslocamento compulsório e reassentamento em função do rompimento da barragem de Fundão.

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