Este artigo foi publicado em inglês no NACLA Report.
Na volta de ônibus da comunidade Terra Cabana para Belém, o ativista sem terra Moisés aponta o florescimento de obras, ao longo da principal e única rodovia por este trecho do norte do Brasil. Passamos por enormes armazéns, condomínios e sítios para a classe média urbana, bem como por numerosas favelas formadas por desalojados do centro urbano em expansão.
“A economia manda aqui”, Moisés me havia dito antes. Um coordenador regional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no estado do Pará, o organizador de 48 anos, ajudou a lançar a Terra Cabana como uma alternativa autônoma à despossessão urbana. A ocupação de seis anos, localizada na periferia urbano-rural a uma hora de Belém, capital do Pará, abriga 68 famílias.
Mas uma empresa de construção catarinense reivindicou a propriedade do território, colocando o futuro da comunidade em risco. Os moradores conseguiram evitar a ameaça de despejo por mais de um ano, mas o medo e a resistência têm dificultado as atividades da comunidade.
Nesta região conhecida como portal para a Amazônia, tais conflitos fundiários muitas vezes se tornam pontos críticos na disputa sobre modelos de desenvolvimento, colocando a segurança alimentar da população local contra os lucros das grandes empresas. O MST, o maior movimento agrário da América Latina, com cerca de 370.000 famílias de trabalhadores rurais participantes, está na vanguarda desta batalha no Brasil e internacionalmente. O Pará é o epicentro da luta contra a injustiça social, diz Gil Alvarenga, do MST. No Pará, os Sem Terra – organizados em 44 ocupações e assentamentos regularizados em todo o estado - resistem à pressão constante da concentração de terra, da especulação e da expansão das monoculturas de soja e pecuária, enquanto perseguem o sonho da reforma agrária e da soberania alimentar local.
Essa luta só se intensificou sob o governo Bolsonaro, cujas políticas anti-ambientais e anti-indígenas têm incentivado ainda mais as corporações já poderosas. Atualmente, mais de 80 mil famílias precisam de terra em todo o Brasil, de acordo com estimativas do MST, e em nenhum lugar a questão agrária não resolvida é tão saliente como na Amazônia.
Um Legado de Despossessão Violenta
O Pará tem sido historicamente o estado com maior violência rural contra as comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, que enfrentaram despejos, invasões, destruição de propriedades, violência armada e outras ameaças. Esta história de violência também tem informado uma cultura de resistência coletiva. A Terra Cabana faz parte do regional “Cabana” do MST, em homenagem à revolução popular Cabanagem do século XIX, que buscava libertar o povo paraense do Império do Brasil. O MST mobilizou este regional em 1998, após o massacre de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1996, quando a polícia militar atirou e matou 19 camponeses sem terra que ocupavam uma fazenda privada no sul do Pará.
Na década de 1990, a tática do MST de ocupar latifúndios se expandiu. O movimento promove a reforma agrária com base na Constituição de 1988, que estipula que a terra deve cumprir uma função social. O movimento identifica latifúndios e propriedades não utilizadas e cria um acampamento para pressionar o governo a redistribuir a terra através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Se bem-sucedido, o INCRA tem a responsabilidade de construir estradas, uma escola, um posto de saúde, instalar eletricidade e fornecer crédito e investimento para a produção agrícola. O processo de regularização do assentamento leva uns 10 anos, e, eventualmente, as famílias ganham títulos das suas parcelas.
A Terra Cabana é a ocupação mais recente do MST na região. Embora o movimento sempre tenha se organizado através das linhas rurais e urbanas, o foco tem sido tradicionalmente os trabalhadores rurais sem-terra. Mas a Terra Cabana está enraizada em uma identidade híbrida que é tanto rural quanto urbana, ou rururbana. Muitas vezes, as pessoas sem teto nas cidades reproduzem o estilo de vida das favelas urbanas, buscando empregos precários, como trabalho doméstico, o trabalho de motorista ou o trabalho na construção civil. Antes de ocupar o território da Terra Cabana, em 26 de junho de 2015, o MST fez um trabalho de base no bairro de periferia Terra Firme em Belém para promover um modelo alternativo: a agricultura camponesa em terras ocupadas.
“O modelo de sociedade é o da cidade”, diz Moisés. “As pessoas perderam a memória da vida camponesa”. “A educação popular é central para o MST, e o movimento trabalha para reeducar as comunidades para construir a memória coletiva e a produção agroecológica”. Apesar das dificuldades devido à falta de apoio técnico e financeiro, a Terra Cabana produz galinhas e colhe uma horta coletiva.
No final de setembro de 2020, a Terra Cabana recebeu uma notificação de despejo de uma corte em Benevides. O MST combateu o deslocamento das comunidades vulneráveis em meio à pandemia, e os moradores de Terra Cabana se mobilizaram imediatamente para resistir à remoção iminente, estabelecendo bloqueios de estradas na rodovia principal.
Em 1º de outubro, a comunidade celebrou a decisão do tribunal de suspender temporariamente a ordem de despejo. Desde então, com a ajuda de advogados de direitos humanos e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), eles continuam negociando com as autoridades locais para garantir uma solução mais permanente. Eles estão negociando uma autocomposição, um compromisso com o proprietário da terra, CCS Construtora e Incorporadora Ltda., o que é raro nestas disputas. A propriedade totaliza 1.100 hectares, e o MST exige um mínimo de 100 hectares, um para cada uma das 68 famílias, sendo o restante reservado como área comunal.
A CPT informa que os conflitos fundiários estão aumentando no Brasil, com 1.576 incidentes em 2020 - o maior número registrado desde o primeiro relatório 1985. Esse total é 25% maior do que em 2019 e 57,6% do que em 2018. No Pará, houve 245 incidentes. Apesar da pandemia, em 2020, 5.218 famílias foram vítimas de conflitos de terra no Pará - um aumento de 175% em relação a 2019 - e o estado reúne 25% de todos os conflitos fundiários e 41% dos conflitos trabalhistas rurais na Amazônia.
A nova geração de luta
O canto dos pássaros se mistura com o som dos carros que passam apressados na estrada principal a poucos metros de distância de onde nos encontramos, compartilhando a comida fora da casa de Manu em Terra Cabana. A organizadora da juventude tem 25 anos e vive na ocupação há mais de um ano. Um dos desafios, diz ela, é reter os jovens e resistir à individualização e exaustão que ameaçam tomar posse.
Com o aumento do desemprego, que atingiu um pico histórico no Brasil no início deste ano, muitos jovens membros da comunidade preferem viver na cidade, pensando em uma ocupação como um lugar para os velhos, explica Manu. Agora a comunidade está construindo uma biblioteca e um canal de rádio comunitário, com foco no envolvimento dos jovens. Manu organizou a juventude para se juntar aos protestos contra o governo Bolsonaro em Belém. “Eles adoram isso, a ação”, diz ela.
Já existem quatro gerações de organizadores, militantes e famílias do MST. Moisés - que participou em diferentes ocupações desde 1999 na “frente massa”, o setor do MST que primeiro entra num território para lançar uma ocupação - diz que a evolução do movimento lhe ensinou a importância de utilizar diversas táticas para alcançar fins militantes. O movimento o obrigou a estudar, inclusive aprender a negociar com o inimigo e falar com os fazendeiros. “Aprendi que saber é poder”, diz ele.
Moisés diz que também está aprendendo sobre novas armas de luta. Quando o MST surgiu nos anos 80, muitos sem-terra eram analfabetos, mas agora a juventude tem acesso à educação, e muitos buscam diplomas. A resistência agora frequentemente incorpora novos elementos culturais e tecnologias. Por exemplo, durante a mobilização para enfrentar a ameaça de despejo no ano passado, os jovens tocaram o tambor e dançaram.
Outras questões de justiça social também moldaram o movimento ao longo dos anos. Segundo Moisés, muitos militantes do MST se identificam como negros e têm exigido mais representação dentro e fora do movimento. O MST exige paridade de gênero, com 50% da coordenação sendo mulheres, e implementou outras medidas, como a criação de creches nos acampamentos. Os membros LGBTQIA+ do MST também se organizaram para reivindicar espaço e representação.
Novos Ataques
A repressão que o MST enfrenta mudou ao longo dos anos. Enquanto antes seus inimigos - grileiros, fazendeiros, madeireiros, e outros - usavam armas e ameaçavam com violência física para intimidar o movimento, agora as estratégias são mais insidiosas.
Particularmente desde o golpe parlamentar de direita contra a ex-presidente Dilma Rousseff em 2016, o governo federal tem muitas vezes concedido títulos de terra irregulares e carimbado a posse ilegal de terras públicas para agropecuária, impulsionando o desmatamento. Sob o governo Bolsonaro, estes processos só se aceleraram juntamente com os esforços para criminalizar os defensores e ativistas da terra na Amazônia. Bolsonaro quer se livrar do problema da reforma agrária e colocar novas terras no mercado.
Em julho de 2019, o governador do Pará, Helder Barbalho, assinou uma lei que elimina os requisitos básicos para a regularização de terra, promovendo efetivamente a grilagem, privatização e desmatamento dos 21,4 milhões de hectares de florestas públicas do estado. A lei também incentiva a especulação da terra a preços abaixo do valor de mercado. Ao mesmo tempo, o governo Bolsonaro acelerou a regularização fundiária dos grandes agricultores, interrompeuos já opacos e lentos processos de reforma agrária, cortou o orçamento do INCRA e eliminou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A reforma agrária praticamente parou.
A comunidade também tem enfrentado esforços de interesses privados para dividir e cooptar o movimento. De acordo com Moisés, seis membros receberam ofertas de compra, buscando cooptar e esculpir a ocupação. “Bolsonaro está atacando o coração do MST”, explica Moisés.
Mas com um novo prefeito progressista em Belém, eleito em novembro de 2020, o MST quer agora realizar um sonho de abrir um Armazém do Campo, sede e centro cultural camponês o MST na capital do Pará. Os Armazéns do Campo até agora existem em seis capitais de estado: Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Luis e Recife.
Mas a comercialização é um desafio no Pará. Em comparação com o sul do Brasil, onde a produção do MST é em grande escala, no Pará, as ocupações e assentamentos praticamente não têm acesso a tecnologias agroflorestais e equipamentos de manejo do solo que os ajudariam a expandir a produção. A produção regional é mais artesanal, e os assentamentos no Pará produzem produtos locais, como açaí, farinha de mandioca e polpas de frutas.
Segundo Beatriz Luz, uma ativista do MST de Belém, um obstáculo é o “custo amazônico” de longas distâncias e pouco transporte que inibem a comercialização. Como resultado, os esforços de distribuição e comercialização de alimentos do MST na área são incipientes e principalmente locais. Ao mesmo tempo, acrescenta Luz, o puro poder do capital e a exploração da terra e da mão-de-obra na Amazônia exige mais organização e recursos para combater os ataques, desviando a capacidade da produção agrícola.
Ainda assim, a Terra Cabana continua lutando. Como diz Manu: “Nós nos chamamos de um assentamento popular porque nós somos nos fazendo”.
Claudia Horn está terminando seu doutorado sobre justiça climática, cooperação internacional e conservação da Amazônia na London School of Economics. Ela tem mestrado em Sociologia pela New School for Social Research e trabalhou como Gerente de Projetos na Fundação Rosa Luxemburg em Nova York. Ela mora em Belém, Brasil.