“A gente ainda tem muita luta pela frente”: Uma conversa com Anielle Franco

A irmã de Marielle Franco fala de seu legado, a urgência de uma política de solidariedade internacional, e o futuro do movimento antirracista no Brasil.

January 4, 2022

Marielle Franco, 2016 (Mídia NINJA / CC BY-NC 2.0)

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Mais de três anos se passaram desde que Marielle Franco, uma vereadora e defensora de direitos humanos negra na cidade de Rio de Janeiro, foi brutalmente assassinada em março de 2018. Mesmo que saibamos que um policial aposentado a matou, não sabemos quem ordenou o assassinato e ninguém foi acusado ou processado pelo crime.

Como irmã de Marielle, Anielle Franco, enfatizou em um discurso para Minority Rights Group International, “o caso de Marielle não é um caso isolado.” Na verdade, ele reflete as condições cotidianas e institucionais de violência racial, de gênero e de homofobia que exterminam a vida de muitos negros, mulheres, transgêneros e ativistas no Brasil. Anielle também nos informa que durante a pandemia em 2020 definida por um descaso e prática genocida do governo Bolsonaro, a polícia matou aproximadamente 1230 pessoas, em sua maioria negras e pobres na cidade do Rio de Janeiro.  

Anielle Franco é diretora do Instituto Marielle Franco, uma organização fundada por ela e sua família após o assassinado de sua irmã, e está completando um Mestrado em Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em uma entrevista em agosto, conversamos sobre Marielle Franco, seu legado através da formação do Instituto Marielle Franco, a urgência de uma política de solidariedade internacional, e o futuro do movimento antirracista no Brasil. A conversa foi editada por ambas para dar clareza e informação adicional para um público internacional.

Anielle Franco, 2020 (Mídia NINJA / CC BY-NC 2.0)


Keisha-Khan Y. Perry: Para o público internacional, quem é Anielle Franco? 

Anielle Franco: Sou professora e jornalista. Eu estudei por 12 anos nos Estados Unidos. Fui jogar vôlei. Eu nunca teria condição de conhecer um outro país se não fosse pelo esporte. Venho de uma família muito humilde. Na época, eu ganhei uma bolsa para ir, para jogar e estudar. Eu estudei na Navarro College, em Corsicana, no Texas, na Louisiana Tech University, na North Carolina Central University e, por último, na Florida A&M University.

KYP: Que interessante essa história!

AF: Eu costumo dizer que a minha formação inteira é fruto da criação da minha mãe, irmã e pai. Eles sempre falavam muito sobre educação na nossa casa, me obrigavam a estudar horas e horas, até quando eu era mais nova mesmo não querendo. Então, eu cresci aprendendo a importância de ser uma estudante comprometida, de ler, de saber falar.

A minha vida intelectual toda passa por mulheres fortes, mulheres que sempre estudaram, que foram primeiras de suas famílias. Eu fui criada com toda essa força e quando mataram a minha irmã, em 2018, eu fui obrigada a saber falar, saber me impor diante de tanto racismo e ódio que a gente tem vivido após o assassinato da Mari. Então, a gente está aí seguindo firme nessa luta, tanto intelectual quanto de solidariedade, de antirracismo, para que possa, de fato, continuar tocando o legado e a memória da Mari, mas sempre com a nossa pauta de mulher negra à frente, protagonizando os nossos passos.

Me orgulho muito da minha trajetória intelectual, das minhas trajetórias enquanto professora, jornalista e escritora, que me formaram e me fazem hoje ser a mãe e a mulher que eu sou. E também tenho orgulho de ter vindo aí na mesma geração, na mesma época que a minha irmã e minha mãe, pra poder fazer com que eu fosse essa mulher de fibra.

KYP: Eu queria voltar a falar um pouco sobre sua formação. Eu sabia que você tinha estudado e jogado vôlei fora, mas eu não sabia que eram faculdades como a North Carolina Central e Florida A & M que são universidades historicamente negras. Me fale um pouco sobre essa experiência, saindo do Brasil com as especificidades políticas raciais e estudando em uma universidade nesse contexto. Como isso, de fato, teve ou não teve um impacto na sua formação intelectual e consciência racial?

AF: Teve muito impacto, muito, muito impacto. Eu saí daqui de um colégio totalmente branco, na zona sul do Rio de Janeiro, onde eu era a única negra em sala de aula. Quando eu ganhei a bolsa de estudos para ir para os Estados Unidos, até em Corsicana era uma faculdade já muito racializada - tinha muitos negros. Ali foi o primeiro local onde eu tive um professor negro. Foi no Texas. Ela foi minha professora de inglês. Eu nunca vou me esquecer dela, a Miss Colin.

Eu comecei a me entender mais como mulher negra. É óbvio que eu cresci com minha mãe e minha irmã falando que nós éramos negras, que a gente tinha que lutar, porque no Brasil não era fácil, além de sermos negras, éramos faveladas, nascemos nas favelas. Porém, entrar nos Estados Unidos em universidades historicamente negras fez toda a diferença na minha formação antirracista. Foi onde eu conheci a Angela Davis, onde eu aprendi sobre Patricia Hill Collins, onde eu aprendi sobre Martin Luther King, Malcolm X, toda a questão do Rap como forma de arte e protesto, o esporte também em forma de protesto para o povo negro. Isso me formou demais. Eu costumo dizer que paralelo à minha criação, foram os meus 12 anos de Estados Unidos que me prepararam para a luta antirracista e para hoje ser também a mulher que eu sou.

KYP: O que você quer que as pessoas lembrem sobre Marielle?

AF: Se eu pudesse escolher o que eu quero que lembrem da Mari, é a fibra, a força dela de lutar. A Mari foi criada de uma maneira também muito focada na educação. Então, ela era muito estudiosa. Eu gostaria que lembrassem dela como uma mulher que saiu de um relacionamento abusivo, como uma mulher que lutava para criar a sua filha sendo mãe sozinha, que nunca desistiu dos seus sonhos, que estudou e trabalhou durante horas e horas, mas que estava sempre determinada, dentro dela, a se tornar uma política e a fazer a diferença, principalmente para mulheres negras.

Ela foi eleita com 46 mil votos, e ela foi eleita de maneira democrática para o povo negro e pelo povo negro. Eu acho que isso é o mais marcante da Marielle. Ela foi eleita falando das minorias que, na verdade, são as maiorias, mas teve uma luta muito firme. Enfrentava as pessoas que eram racistas no plenário. Se colocava nesse lugar mesmo de luta.

KYP: No Instituto Marielle, quais projetos políticos e intelectuais vocês entendem que seja mais importante dar continuidade e por quê?

AF: Um dos projetos mais importantes da Mari era um chamado "Espaço Coruja", que era onde ela visava colocar crianças para mães que trabalhavam à noite. Outro projeto do qual ela falava, “Livre Parir”, focado na liberdade e o direito das mulheres de parirem, de usarem seus corpos para parirem no momento que elas achassem mais correto, porque aqui no Brasil, a violência obstétrica é muito cruel com as mulheres. Mais de 50% das mulheres, quando vão parir em hospitais públicos no Rio de Janeiro, no Brasil, são violentadas, porque eles dizem que nós somos fortes, por sermos mulheres negras. Então, as mulheres negras podem sentir dor. Mari tinha um projeto para diminuir essa violência obstétrica. Um outro projeto da Mari que era muito importante pra mim sempre foi o acesso para as mulheres poderem denunciar tipos de assédio ou violência que viviam de seus companheiros ou pais, mas discretamente e com acolhimento.

KYP: Vocês estão dando continuidade a esses três projetos de Marielle para preservar sua memória e também seu legado. O Instituto tem, de certa maneira, expandido seu legado? O que você entende que tem que ser o legado da Marielle, em termos de outros projetos?

AF: Em 2020, a gente teve a primeira eleição após o assassinato dela. A gente fez uma agenda, a Agenda Marielle Franco, que foi dentro de uma plataforma, a Plataforma Antirracista nas Eleições. Nessa plataforma a gente colocou todo o trabalho dela feito dentro da política nesses 15 meses. Nós conseguimos fazer com que muitas pessoas que estavam se candidatando naquele ano falassem sobre e se comprometessem também com esses projetos. Acho que esse projeto foi uma das maiores vitórias que nós tivemos em 2020.

KYP: Em agosto de 2021, completamos 41 meses sem respostas, sem justiça e sem saber quem matou ou quem mandou matar Marielle Franco. Como você, sua família e o instituto estão lidando com essa injustiça?

AF: É sempre uma dor. Eu acho que é sempre muito preocupante quando a gente não tem respostas. Nós estamos num país que infelizmente é muito conhecido pela impunidade. A gente entende a importância de que a Marielle, de que esse crime fosse elucidado, mas ao mesmo tempo a gente tem inúmeras pessoas cujos assassinos ou mandantes nunca foram descobertos. Não é fácil. A gente sente muita falta dela.

KYP: Na perspectiva de vocês, o que essa impunidade revela sobre a sociedade brasileira, ou sobre a justiça no Brasil?

AF: É o quanto a gente vive numa sociedade racista, misógina, uma sociedade que entende que os nossos corpos pretos são descartáveis. Acho que o crime dela fala muito sobre isso, porque ser uma vereadora e as pessoas acharem que poderiam matar assim e ficar por isso mesmo.

KYP: Corpos descartáveis, sim. O que você pensa que vem pela frente na luta pela justiça racial no Brasil? Como você imagina seu futuro e do Instituto Marielle nesta luta?

AF: A gente ainda tem muita luta pela frente. Eu acho isso é o começo. Acho que a gente ainda tem conseguido fazer, pautar e incidir, tanto nacionalmente como internacionalmente. Tem sido muito gratificante, mas são passos muito lentos. São passos que a gente ainda tem que ter muitos anos de reparação para tudo o que tem acontecido com o Brasil em relação ao povo negro, principalmente. Eu espero que o Instituto siga crescendo, se fortalecendo, e siga também liderando como nós estamos hoje dentro dos movimentos sociais, liderando para que a gente seja protagonista da nossa vida e que a gente não precise esperar outras mulheres negras serem assassinadas para que a gente possa falar delas.

KYP: O que a comunidade global pode fazer concretamente em termos de esforços solidários?

AF: Eu acho que acompanhar o trabalho desses movimentos, divulgar. Quem puder, obviamente, também contribuir. Eu acho que quanto mais visibilidade a gente tem, seja aqui, seja internacionalmente, é mais importante e melhor, porque a gente entende que sozinha a gente não consegue nada.

Visite o site do Instituto Marielle Franco para aprender mais e oferecer seu apoio. Para mais leituras, recomendamos Marielle Franco: Raízes e “On the Imperative of Black Feminist Solidarity: A U.S. Black Feminist Solidarity Statement on the Assassination of Marielle Franco.”


Keisha-Khan Y. Perry é professora (Presidential Penn Compact Associate Professor) de Estudos da Diáspora Africana da Universidade da Pensilvânia onde pesquisa movimentos sociais liderados por mulheres negras na América Latina e no Caribe. É Jamaicana de origem e mora aqui nos Estados Unidos pelos últimos trinta e poucos anos. Escreveu o livro sobre mulheres negras em movimentos de bairro, Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira: A luta das mulheres negras pelo direito à terra no Brasil, que vai ser publicado em português este ano. 

Joyce Silva Fernandes é estudante de doutorado no programa de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown onde tem enfocado seus estudos em literaturas em português na África e sua diáspora.

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