“Petróleo para alguns poucos” nos portos de exportação do Brasil

Para um pequeno agricultor no estado do Rio de Janeiro, um porto privado que serve a indústria de combustíveis fósseis trouxe uma luta de uma década para permanecer na terra.

February 13, 2024

Porto do Açu, Rio de Janeiro. (Prumo Logística / Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços / CC BY-SA 2.0 DEED)

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Fazem alguns anos que moradores e pequenos agricultores na região do Porto do Açu, no Norte Fluminense, resistem ao processo de desapropriação forçada de suas terras. Os pequenos agricultores notam que apenas 10 por cento das terras tomadas para a construção do Complexo Industrial do Porto do Açu estão sendo utilizadas. Eles também lutam para que a empresa Prumo Logística reabra o acesso de pescadores artesanais à Reserva Caruaru, que com a expansão acabou ficando dentro do Complexo Industrial.

O Porto do Açu foi concebido em 2007 pelo Grupo EBX, do empresário Eike Batista, e vendida durante a crise financeira da empresa em 2013 para a empresa norte-americana EIG Global Energy Partners, que controla a holding brasileira Prumo Logística que agora administra o Porto do Açu. O Porto tem localização estratégica para a indústria do petróleo e gás, pois está situada perto das Bacias de Campos e do Espírito Santo, ambas com muita produção offshore.

De acordo com o site do Porto do Açu, 30 por cento da exportação de petróleo do país passa pelo porto, que também abriga a maior base de apoio offshore do mundo (com empresas como a BP Marine, Vibra Energia e Vast Infraestrutura que tem contratos com a Shell, Total Energies, Petrobras, Equinor e outras). O Porto também hospeda duas usinas termelétricas de ciclo combinado, a GNA I e II, da empresa Gas Natural Açu, e o terminal privado de mineração (ferro) que serve a multinacional Anglo-American.

Dona Noêmia Magalhães é produtora rural e representante dos pequenos agricultores do quinto distrito de São João da Barra no Rio de Janeiro e participante ativo na resistência contra o Porto. Ela recém recebeu o prêmio Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a aquelas pessoas que prestam serviços à causa pública. Nesta entrevista, ela discute os impactos na comunidade e sua luta para permanecer na terra e produzir alimentos, apesar de ter sofrido várias ameaças a sua vida por causa de sua resistência. Esta entrevista foi realizada no dia 6 de outubro, online. A conversa foi levemente editada por sua extensão e clareza.


Patricia Rodriguez: Vocês vem enfrentando muita coisa aí nessa região. Você poderia nos contar um pouco sobre a sua luta e de muitos outros agricultores familiares também que estão sendo afetados por vários projetos na região do Norte Fluminense mas principalmente pela presença do Porto do Açu, e como você se inseriu nessa luta? Em particular, antes do porto ser construído, você alguma vez pensou ter que enfrentar um monstro desses?

Noȇmia Magalhães: A gente não tinha ideia porque o sítio já tem quase 30 anos, e o Porto do Açu está fazendo 13 anos. Era um sonho nosso meu e do Valmir Batista, meu marido. O sítio tem o nome dele, Sítio do Birica. Era um sonho nosso na nossa terceira idade ter um lugar tranquilo onde a gente pudesse andar descalço, pisar na lama, pisar no barro, e plantar a nossa produção alimentícia sem veneno. Tudo orgânico.

Eu me apaixonei pelo sítio, e comecei a produzir. Chegou um ponto que os agrônomos iam me visitar e diziam: “aqui acontece o verdadeiro milagre porque é assustador a produção do sítio do Birica.”

Noêmia Magalhães (Cortesia de Noêmia Magalhães)

Vivemos assim tranquilamente uns 16 anos quando veio a ideia do Porto do Açu que a gente nem acreditava muito grande a gente achava que não caberia ali no nosso ideal, não caberia em nada nosso, não era nosso.

Os agricultores me procuravam para falar sobre isso e quando realmente foi colocada a pedra fundamental que a gente viu que seria uma realidade; a gente ainda imaginou que seria uma coisa boa pra todos nós. Seria um Porto, que no início seria só um Porto mesmo, não se falava nada sobre distrito industrial. Mas a gente viu depois foi incorporado o distrito industrial e quando a gente viu a realidade que não seria nada bom pra gente os agricultores ficaram muito assustados. O projeto foi assinado numa véspera de ano novo no dia 30 de dezembro de 2008, às oito horas da noite, por meia dúzia de vereadores.

Era um verdadeiro monstro. Eles são maquiavélicos né? Eles tentam primeiro seduzir as pessoas com promessas que nunca irão ser cumpridas com as quais seriam realizados sonhos. Eu acreditava que seria uma parceria boa, mas quando veio a história do distrito industrial nossas terras rurais foram transformadas em terra industrial foi um choque muito grande. Foi uma coisa feita às escondidas mesmo. Não houve preparação para o agricultor. A gente via na época a prefeita [de São João da Barra] Carla Machado, o governador [do Rio de Janeiro] Sérgio Cabral e o tão famoso [empresário] Eike Batista nas negociações fazendo muito projeto e a gente percebia que nós não éramos inseridos em nada.

Foram desenhando aquela história que as nossas terras seriam entregues para eles; a gente já não era mais dono das terras e seriam entregues para eles fazerem o que quisessem. Isso nos deixou muito assustados e uma coisa assim também que a gente não estava preparado pra essa enorme luta.

A gente tinha noção de quanto a gente era pequeno diante dessa luta, mas não nos deixou abalados, não nos desencorajou. Nós vamos lutar porque eu sempre acreditei muito assim quando você está com a verdade você já tem cinquenta por cento da garantia da Vitória né e a gente tava com a verdade enquanto eles só usavam de mentira e de enganação, vimos assim a necessidade de buscar apoio de quem que pode nos ajudar. Eram mais ou menos três mil famílias envolvidas e como fazer para entender foi quando a gente passou a buscar apoio nas universidades, principalmente na Universidade Federal Fluminense, que comprou a nossa briga. Nós temos um documento que foi assinado por 160 entidades diferentes que estavam do nosso lado. Tínhamos também a presença dos coordenadores, das pessoas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) que são muito corajosos e muito preparados pra luta então nos juntamos a eles.

PR: Então a luta contra a desapropriação dos sítios foi judicial, você pode nos contar um pouco como foi essa luta na justiça, e a resistência de vocês?

NM: Isso, porque o estado é soberano e a empresa não poderia desapropriar. A prefeita Carla Machado, o Eike Batista e o Sérgio Cabral [HG2] fizeram um trio imbatível. Tudo que o Eike Batista queria ele falava pro governador, que entregava de bandeja. Passou de ser nossas terras rurais a ser terras industriais, um prato cheio. O estado entrou desapropriando, era uma coisa muito estranha, porque eles vinham normalmente cinco horas da manhã com vinte viaturas, oitenta policiais e vinham com toda força, pra derrubar mesmo.

Eles diziam: ‘ou você sai, e tem dez minutos pra desocupar a casa ou nós vamos entrar derrubar a casa, tira o que quiser ou então nós vamos derrubar com vocês dentro.’ Alguns agricultores tinham sessenta e seis anos, setenta anos, foi inacreditável. Era como se você estivesse assistindo um filme de terror. Os agricultores resistiram até o fim, eles foram algemados e colocados num camburão. Muitos passaram mal.

Usavam uma máquina poderosa que eles levavam, ela girava em torno do eixo e ela derrubava a casa e depois ia derrubando a plantação. E o agricultor algemado assistindo. Ele pedia, “me dá dois meses, um mês que eu possa colher, tá na hora da colheita.” E a máquina destruía, parecia que estava com prazer destruindo e esmagando tudo. Junto com a produção e com a destruição da casa, eles arrebentaram também os nossos ideais, nosso sonho. Eles iam nos destruindo por dentro; nós sentimos verdadeiramente esmagados por aqueles tratores.

Então nos vimos na obrigação de procurar advogados; a gente tem vários advogados diferentes, pois não foi uma causa coletiva já que nossos lugares, causas e histórias são diferentes. É muito complicado, os processos não andam, estão parados. Os agricultores estão sem as terras, alugando terra em outros lados, já que eles dominam um terço do município, pois o Complexo Industrial Porto do Açu tem 90 km quadrados.

A gente entendeu antes que na realidade seria só um Porto, depois eles enxergaram as terras

como um um lugar pra ter muito lucro. Eles pediram a desapropriação, a transformação de rural para industrial e como isso de alugar terra [para a indústria] dá certo eles não vendem. Fizeram um calado pros navios e foram tirando essa areia que saía encharcada de água salgada que eles levaram pra depositar a uns seis quilômetros costa adentro, e se formou uma montanha de sete metros e uma extensão enorme.

Qualquer pessoa não precisa nem estudar para saber que essa areia infiltrando no solo

ia percorrer a região da agricultura. Com o tempo ela simplesmente salinizou e matou as plantações. Isso já foi comprovado e até hoje, três anos depois, ninguém foi indenizado. Também há erosão na costa, e o mar vai invadindo a região onde há um grande número de habitantes.

A companhia [Prumo Logística] nega que eles são responsáveis, e eles falam muito sobre que o porto trouxe muito benefício. Nós como agricultores e moradores da região não conseguimos ver nada de positivo.

Porto do Açu, Rio de Janeiro. (Prumo Logística / Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços / CC BY-SA 2.0 DEED)

PR: Se pudesse haver mudanças nessa situação, alguma ação governamental, uma reparação, uma solução justa, o que seria?

NM: Antes da pandemia nós tivemos com nossos geógrafos, os nossos apoiadores e junto com os agricultores e pescadores. Fizemos uma reavaliação da quantidade de terra que eles estavam em poder.  E já tínhamos conversado com a maioria dos deputados que poderia ver uma nova avaliação ou estudo devolvendo pra gente aquela terra que eles pegaram. Um terço pra nós seria o suficiente, já daria pra conviver, pois  desde o início a gente falava que daria pra conviver se fosse só o Porto e agricultura no mesmo local. Não haveria nenhum problema, só que eles não querem assim.

Tivemos um encontro com um deputado que tinha estudado nossa proposta, achava viável, mas ele foi preso com mais três deputados, e logo veio a pandemia. Não tivemos maiscondição de levar em frente, mas existe esse mapa o novo desenho de como seria é não prejudicaria o Porto.

Até hoje, eles não usaram nem dez por cento. As terras estão lá cercadas de arame farpado, onde o pessoal que perdeu a terra colocou os gado à revelia mesmo deles. Tem muito gado, e aí como é muita terra, inclusive pessoas vêm de cidades bem distantes passaram a levar o gado pra lá porque o pasto realmente é muito bom. De vez em quando tem acidente com esse gado, e a gente tem que conviver com isso. Hoje no meu sítio o fluxo é de cinco mil carros, caminhões, e ônibus diários na frente do sítio, que fica a cinco quilômetros da principal entrada pro povoado. Toda a logística do porto passa ali e a gente convive com isso.

PR: Também tem a questão do mineroduto [que transporta 26 milhões de toneladas por ano de minério de ferro desde Minas Gerais a 529 km de distância] que afeta a população da região, não é assim?

NM: Isso. É um mineroduto [da multinacional Anglo American] que vem lá de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais. Ele passa em 32 municípios. Quando estava sendo construído, veio afetando onde ele passa, pois tem que cortar árvores, cavar fundo, e a maioria das pessoas não receberam indenização ainda pelos impactos. O minério vem com água e gel, e no pátio do Porto eles formam uma montanha com isso, que deveria ser coberta e molhada todo o dia, mas eles não cumprem. O vento que bate ali naquela montanha de minério deve levar toda essa poeira contaminada, e a gente sente um mal muito grande. É muito fácil você encontrar pessoas com problemas respiratórios na região.

Várias coisas contribuíram para enfraquecer a ação coletiva, com o tempo. Uma é o poder do dinheiro, pois eles conseguem comprar quase tudo com o dinheiro. Parece que a lei foi feita para eles, e o policiamento da região serve só para proteger o Porto, não nos proteger e nos dar cuidado. Ao contrário, a gente tem que ter o maior cuidado para não chegar muito tarde em casa, a gente não sabe o que pode acontecer.

Tem uma reserva lá que dizem que é particular, a Reserva Caruara, que sempre foi usada pelos agricultores e pescadores, pois tem uma lagoa maravilhosa de 18km que produz muito peixe. Era uma das fontes de renda porque lá é comum o agricultor ser pescador também de carteirinha. Tínhamos cinco entradas do nosso lado. Então eles fecharam nossas entradas, e agora temos que ir 120 km para chegar lá, e tem que mostrar documento. Fica muito difícil, não compensa. A gente acredita que esse fechamento foi para tirar nossa visão dos impactos que foram causados na região. Nós estamos tentando que eles reabram pelo menos uma portaria ali do nosso lado pro pescador e agricultor continuar ali. Eles conhecem tudo: a vegetação, as plantas, os animais, desde criança são acostumados a frequentar ali. Foi como tirar uma parte muito importante da história deles e o acesso a complementação da da economia familiar.

É um Porto com uma lógica de exportação e de incentivar simplesmente o petróleo para alguns poucos. Como poderia ser diferente a economia na região, e que se respeitasse o nosso direito de continuar com a agricultura.

PR: As pessoas que lerem ou verem esta entrevista, seja nos Estados Unidos ou na América Latina, no Brasil, como elas poderiam apoiar vocês ou fazer mais visível essa situação?

NM: A gente tem vários documentos, têm livros contando a história, tem muitos vídeos também. Se tornar um apoiador nosso, seja de qualquer maneira, e se der nos orientando também. Hoje a nossa história é conhecida no mundo.

Sabe que eu ja sofri quatro atentados, inclusive um com revólver na cabeça. Muita gente se afasta porque não acha seguro estar do nosso lado. Mas tudo isso vai agregando valores à luta. Tem muita gente que ainda não conhece a história. Eu tenho uma frase que eu gosto muito que fala que na vida, existem duas coisas distintas, existe preço, e existe o valor, o amor. Pra mim, fazenda é uma coisa, terra é outra; é terra é um bem que não se vende. Ela não tem preço.


Patricia Rodríguez trabalha como Analista e Ativista Internacional de Imagens de Gás Ópticas (OGI em inglês) em Earthworks. OGI usa tecnologia infravermelha para detectar gases fugitivos, emissões de metano, e compostos orgânicos voláteis mal queimados da indústria de petróleo e gás natural.

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