Bolsonarismo, um fenômeno criado pelo próprio Brasil?

O ex-presidente Jair Bolsonaro chegou ao poder em diálogo com forças globais de extrema direita. Mas as raízes históricas do movimento associado a ele são exclusivamente brasileiras.

April 2, 2024

O presidente Jair Bolsonaro recebe uma salva militar durante uma cerimônia em Brasília, em 5 de dezembro de 2020. (ISAC NÓBREGA / PR / CC BY 2.0 DEED)


Este artigo foi publicado em inglês na edição de primavera de 2024 de nossa revista trimestral NACLA Report.


Em 8 de janeiro de 2023, milhares de manifestantes de extrema direita invadiram prédios governamentais em Brasília, em um grande ato contra a eleição e a posse de Lula da Silva como Presidente. Paramentados majoritariamente com cores nacionais, muitos deles traziam palavras de ordem contra as instituições republicanas e o governo recém-empossado. O movimento se concentrou na capital federal, mas foi articulado nacionalmente, envolvendo o fechamento de ruas e rodovias, acampamentos organizados em frente a espaços militares, ameaças de greves de caminhoneiros, assim como as tradicionais mobilizações nas redes sociais. Entre as demandas, existiam desde componentes de teorias da conspiração até o descrédito institucional, inclusive em relação aos mecanismos do processo eleitoral.

A denúncia de uma suposta fraude eleitoral foi o centro das mobilizações, que reivindicavam a presença dos militares no campo político como interventores, que teria como propósito garantir o retorno de Jair Bolsonaro à presidência. A suspeição sobre o processo eleitoral foi direcionada exclusivamente à eleição do poder executivo federal. Não foram levantadas suspeitas sobre a eleição de governadores, senadores e deputados de viés conservador ou efetivamente bolsonaristas.

Alguns paralelos foram imediatamente traçados, principalmente com os eventos ocorridos em 06 de janeiro de 2021, no ataque ao Capitólio em Washington, DC. Era fácil constatar a presença de padrões de comportamento comuns, como um vocabulário mobilizado em torno da ideia de um deep state, a denúncia sobre a suposta influência de agentes e agências do globalismo antipatriota, assim como a denúncia de fraudes eleitorais, que justificariam as atividades antidemocráticas como um esforço de retorno à democracia aos “verdadeiros patriotas”.

É necessário considerar que o evento de 2023 em Brasília foi um episódio culminante de um processo de ampla radicalização, envolvendo dinâmicas políticas, de setores sociais organizados e de indivíduos mobilizados. Não foi um episódio derradeiro ou germinal, tampouco um fenômeno unilinear que podemos chamar, latu sensu, de bolsonarismo. Isto porque foi um evento inscrito em um ciclo político mais amplo de ao menos uma década, com a presença de tradições históricas consolidadas no repertório político e cultural das direitas brasileiras, fossem elas institucionais ou não.

A convergência ao bolsonarismo – e a própria ideia da existência de um bolsonarismo relativamente coeso – é algo mais recente. Além disso, é importante considerar que o fenômeno converge à dinâmicas e influências internacionais, com a ascensão de novos atores e uma cooperação transnacional das direitas radicais, assim como a crise e o descrédito dos ritos fundamentais da democracia liberal.

Para complexificar a interpretação do quadro brasileiro, propõe-se que é necessário considerar dois aspectos fundamentais e relacionados. Em primeiro lugar, entender que a formação das chamadas novas direitas e a sua intersecção com o bolsonarismo como um fenômeno plural, guarda também relações com padrões historicamente situados, o que auxilia a compreender, por exemplo, o papel dos militares neste processo. Em segundo lugar, considerar que é importante compreender este fenômeno em torno de um quadro mais amplo, qual seja do mais recente ascenso das direitas radicais em escala global, mas que se adaptam e são influenciados por características e conjunturas locais e regionais. A partir dessas questões, é possível argumentar sobre algumas especificidades do quadro brasileiro, assim como a construção do Brasil como um terreno próprio para invenções ou experiências – isto é, um laboratório – da extrema direita regional e internacional. Com isso, é possível ter uma visão mais ampla e não fixada exclusivamente nos eventos, por mais importante que eles sejam.

A constituição brasileira está embaixo de um vidro quebrado após a invasão do Congresso Nacional em 8 de janeiro de 2023, em Brasília. (Pedro França / Agência Senado / CC BY 2.0 DEED)

As novas direitas e a gestação do bolsonarismo

O primeiro ponto que merece atenção são as chamadas novas direitas no Brasil. Este é um fenômeno plural, que foi analisado de maneira variada por autores de uma vasta bibliografia. Entre as interpretações, é possível citar a disposição das novas direitas em defesa das assimetrias excludentes vinculadas aos processos do neoliberalismo e de seus efeitos, como valores conservadores e individualismo mercadológico e o uso de tecnologias de informação para matizes de desinformação, como pontuado por Vera Alves Cepêda. Camila Rocha, analisou a formação de contra-públicos de tendência liberal, formados por grupos de oposição aos governos petistas, que não se sentiam representados pelas pautas dos partidos tradicionais da direita, tampouco pelas propostas de militarização.

Jorge Chaloub e Fernando Perlatto interpretaram o quadro a partir da ascensão do liberalismo conservador e suas variações na esfera pública e no mercado editorial brasileiro, assim como os impactos desse campo, junto ao afastamento temporal, no esmaecimento da memória da ditadura civil-militar. Angela Alonso notou as modulações dos protestos nas ruas na cidade de São Paulo, e a incorporação de repertórios conservadores, antissistema e contrários às agendas e lideranças políticas de esquerda.

Em geral, essas pesquisas compreendem a pluralidade das novas direitas, que traziam novos atores e componentes, como o apelo ao armamentismo, às agendas conservadoras, assim como a presença de atores políticos religiosos, notadamente do campo evangélico. Como notado por autores como André Kaysel e Rodrigo Patto Sá Motta, a pluralidade das novas direitas estava inscrita também em um largo histórico. O conservadorismo, principalmente na noção moralista da gestão dos corpos das mulheres e na defesa de modelos tradicionais e heteronormativos de família, complementava-se com o anticomunismo como um fio condutor de longa duração. A defesa da liberdade, inclusive de mercado, contra supostos autoritarismos, encontravam eco em antigas formações políticas, que ressoavam em contextos e discursos das radicalizações marcantes do período da Guerra Fria.

Ainda assim, as novas formações políticas e suas características não podem ser desmerecidas. Além dos usos das novas tecnologias de informação e comunicação, as novas direitas, no Brasil, ampliaram as suas bases e construíram uma cultura de protestos a partir das mobilizações em torno da pauta anticorrupção, nas crises envolvendo o Partido dos Trabalhadores, assim como de um discurso antipolítico crescente junto aos impactos da operação Lava Jato e a judicialização da política brasileira. Esses aspectos paulatinamente colocavam em xeque as bases da chamada Nova República brasileira, erigida após a transição democrática de 1985 e o processo da Assembleia Nacional Constituinte. O esgotamento do ciclo das commodities e a crise da onda rosa dos governos à esquerda na América Latina, também são aspectos que não podem ser desmerecidos.

Ao longo do governo Dilma Rousseff, a contrariedade às políticas de direitos humanos (principalmente o Programa Nacional de Direitos Humanos, PNDH-3), de memória em relação à mais recente ditadura civil-militar (a Comissão Nacional da Verdade, em especial) e de combate à homofobia (o projeto Escola Sem Homofobia), consolidaram um campo de uma direita anti-direitos, assim como uma base com apelo crescentemente violento e antidemocrático.

A partir deste contexto, a presença de Jair Bolsonaro como uma virtual liderança foi construída paulatinamente. Ao longo da década de 2010, Bolsonaro ocupou setores midiáticos e políticos, aproveitando aspectos do debate público, demandas espaçadas e acenos de grupos militares, assim como a aproximação com setores do conservadorismo católico e, principalmente, do campo evangélico. A presença de Bolsonaro nas formaturas de turmas militares, assim como o batizado evangélico realizado no Rio Jordão em Israel, ilustram a imagem de uma figura que se afastou do reduto marginal da extrema direita militar residual e de baixa patente, e incorporou novos aspectos mobilizadores e de representatividade, principalmente a partir de questões relativas à sexualidade heteronormativa, na crítica às políticas de cotas, e no apelo religioso, que ilustrariam o reaparecimento e a atualização do lema “Deus, Pátria, Família”, outrora propriedade dos fascistas brasileiros da década de 1930, agora presente nas eleições de 2018.

Como um ouroboros, da mesma forma como Bolsonaro buscou incorporar demandas das novas direitas, setores dessas novas direitas se aproximaram do projeto político que se fortaleceu a partir de aliança entre militares, evangélicos, agronegócio, armamentistas, mercado financeiro etc. As outras expressões das novas direitas paulatinamente se aproximaram do projeto bolsonarista. O desenho de sua equipe ministerial ilustra a construção do projeto eleitoral vitorioso, em torno da recepção de bandeiras e tendências mobilizadas pelas novas direitas.

Na economia, a relação com os grupos liberais e neoliberais, cristalizou o economista Paulo Guedes como espécie de fiador da candidatura e presidência de Jair Bolsonaro. Seria Paulo Guedes e o seu intuito de choque neoliberal que garantiriam a estabilidade política, o apoio do mercado e a normalidade democrática do governo. A trajetória do ministro da Economia como um Chicago Boy, inclusive com atuação durante a ditadura chilena de Augusto Pinochet, não foi compreendida como um perigo à democracia brasileira.

O Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, liderado pela pastora evangélica Damares Alves, concretizou a relação com o campo mais radical do conservadorismo evangélico. A transformação do ministério, outrora denominado Ministério dos Direitos Humanos, teve como objetivo conceder protagonismo ao modelo conservador de núcleo familiar, considerado como uma “minoria” em perigo face ao avanço das agendas progressistas, de movimentos sociais, e de grupos e entidades feministas, LGBTQIA+ etc.

A Ernesto Araújo, coube conduzir uma nova fase da diplomacia brasileira, alinhada a uma ideia de defesa do Ocidente Cristão. O Ministério das Relações Internacionais (Itamaraty), serviu como articulador de uma orientação contrária ao multilateralismo e, logo, abertamente pró-EUA, pró-Israel e vinculada aos modelos aproximáveis às noções de democracia iliberal. Junto ao ministério da Educação, foi o ministério que sofreu maior influência do reacionarismo e tradicionalismo de setores olavistas, isto é, vinculados ao intelectual Olavo de Carvalho. Particularmente, o campo da educação foi palco de projetos em torno da militarização do ensino, a partir do projeto das Escolas Cívico-Militares.

Um acampamento de protesto em frente ao quartel militar em Ilhéus, Bahia, pede intervenção militar após as eleições presidenciais de 2022. (IXOCACTUS / CC BY-SA 4.0)

De modo geral, o governo Bolsonaro forneceu estabilidade a tendências variadas das novas e velhas direitas brasileiras, promovendo ganhos efetivos. O campo militar, por exemplo, garantiu um voluptuoso aumento em termos financeiros e políticos. A presença de militares no governo superou os índices, comparativamente, com a ditadura civil-militar de 1964, em termos de ministérios. No campo da administração pública, inclusive em funções comissionadas, a presença duplicou, ultrapassando mais de 6.000 militares em cargos.

A busca por consolidação no campo institucional e parlamentar, coexistiu com um esforço de mobilização das bases. O bolsonarismo, com efeito, demonstrou a capacidade de ser um fenômeno mais amplo, composto por variadas tendências, inclusive algumas delas próximas ao campo neofascista. O bolsonarismo governamental não seguiu necessariamente o mesmo ritmo das demandas das bases presentes nas redes e nas ruas, que demonstravam empenho e urgência em propor medidas de ruptura democrática.

Nos anos recentes, um repertório variado foi articulado por grupos do bolsonarismo ainda mais radical. As tendências de ucranização, por exemplo, foi uma dessas novidades. Os grupos “ucranizadores” reivindicavam esta denominação por inspiração pelos eventos ocorridos em Euromaidan, na Ucrânia, quando protestos estudantis deram lugar a agitação de grupos de extrema direita. Na percepção dos grupos brasileiros, “ucranização” significaria a adoção de táticas violentas, como forma de tensionamento, a fim de promover o expurgo de profissionais e opositores do campo político. Para isso, articularam acampamentos e manifestações nas ruas, trazendo um repertório que cresceu nos meses subsequentes. A rigor, a ideia de “ucranização” era algo já presente em pequenas agrupações neofascistas, mas que se tornaram comum ao bolsonarismo mais radical, promovendo uma interlocução efetiva.

Em torno de grupos de inspiração neofascista e na estética comum a grupos identitários da extrema direita, assim como da direita alternativa dos EUA, houve iniciativas como o “Trezentos”, pequeno agrupamento que tinha como alvo o Supremo Tribunal Federal e os ministros da alta corte. A proposta deste grupo era promover eventos que se apropriavam de estética comum a grupos como o francês Génération identitaire, o italiano Casa Pound, assim como o evento Unite the Right, ocorrido em Charlottesville em 2017.

Ainda assim, é importante salientar que as mobilizações mais enfáticas e efetivas foram aquelas com referências concretas à realidade política brasileira, seus dispositivos e imaginários políticos. O Artigo 142 da Constituição Federal brasileira, interpretado arbitrariamente e equivocadamente como uma cláusula que permitiria a hipótese de intervenção militar na política brasileira, foi mobilizado como um dispositivo pela extrema direita, direcionado contra setores do poder legislativo, mas principalmente em confronto ao judiciário brasileiro. O mecanismo constitucional deturpado daria guarida a medidas draconianas, como o fechamento do Congresso e da Suprema corte, com os militares articulados em torno de Jair Bolsonaro.

Em eventos de forte mobilização popular, como as festividades de 07/09, Dia da Independência nacional, as bases bolsonaristas entoavam lemas como “Supremo é o povo”, “Intervenção militar com Bolsonaro no poder” e “Art. 142 já!”. Lideranças do governo e o próprio presidente eram estrategicamente alocados e fotografados em locais com faixas e estandartes com menções a estas frases.

Porém, à medida que novos atores, novos grupos e demandas, assim como novas linguagens e componentes são adicionados ao caldo cultural e político, há um esforço concreto de reivindicação do estatuto das direitas radicais e extremas e suas tradições assentadas no imaginário político local e regional. O que dizer, por exemplo, sobre a utilização do lema comum ao integralismo, o fascismo brasileiro? Ou por qual razão muitos destes grupos bradavam temáticas como “A nossa bandeira jamais será vermelha” e “O Brasil não será uma nova Cuba”, corriqueiras nos anos 1960 e novamente popularizadas ao longo da última década?

Consideremos que esta recorrência está ligada a um ligeiro leitmotiv, mas também à presença de tendências políticas que fomentavam um elo entre gerações novas e antigas das direitas brasileiras. Isto por que o imaginário político das novas direitas traz consigo algo das tradições imanentes, seja de referências ao pensamento autoritário do início do século XX, do anticomunismo da Guerra Fria, do totalitarismo fascista, ou mesmo dos valores conservadores próprios à formação da identidade nacional, do fim tardio do sistema escravista etc.

Com efeito, as clivagens presentes nas novas direitas brasileiras, assim como as modulações que compunham as gradações dos projetos radicais e antidemocráticos do bolsonarismo, merecem ser interpretados por uma dupla dimensão. Em primeiro plano, a relação entre o passado e o presente, ou simplesmente as novas e velhas direitas. Em segundo plano, a relação entre o local e global nestes fenômenos. A primeira dimensão considera que o imaginário político assentado no bolsonarismo não ecoa apenas as novidades surgidas nas últimas décadas, tampouco são reflexos de perspectivas exclusivamente conjunturais das mais recentes crises políticas. De igual maneira e em contrapartida, não são o ressurgimento de modelos erigidos ao longo do século XX, como o do fascismo histórico.

O bolsonarismo entre o global e o local

A segunda dimensão está ancorada na busca por especificidades regionais e locais em torno de um fenômeno global. A perspectiva global e transnacional é um tema trabalhado por uma larga bibliografia, dedicada a esmiuçar as crises da democracia e a ressurgências das direitas radicais. Sem dúvida, há um padrão global que precisa ser considerado, pois há modelos de autocratização que unem a experiência recente de Bolsonaro, no Brasil, à de Viktor Orbán, na Hungria, ou as buscas de rupturas em eventos com mobilizados por trumpistas e bolsonaristas.

Em linhas gerais, muitos destes fenômenos constroem processos de derrocada das democracias por meio de seus próprios mecanismos e instituições. Isto envolve desde a busca por uma transformação institucional (com o cerceamento das próprias instituições, seus integrantes e de suas finalidades), assim como a consolidação da imagem das lideranças de direita radical como representação direta das supostas vontades populares.

Isto implica considerar que a onda global, em grande medida se inscreve na conjuntura das crises da democracia liberal para, utilizando os mecanismos e ritos da própria democracia, construir um regime político autocrático de direita, contra minorias, movimentos sociais, políticas públicas e de memória etc.

O Congresso Nacional, parte da Praça dos Três Poderes na capital brasileira que foi invadida em 8 de janeiro de 2023. (ROQUE DE SÁ / AGÊNCIA SENADO / CC BY 2.0 DEED)

Ainda que a perspectiva global seja um aspecto a se considerar, é importante ter em conta questões inscritas na conjuntura local e latino-americana, pois elas auxiliam a tornar efetivos esses projetos. O ponto de partida desta interpretação é que, a despeito da busca pela construção de uma hegemonia da democracia liberal após o fim da Guerra Fria e o chamado “fim da história”, este processo se desenvolveu em escalas e intensidades diversificadas. O fim das ditaduras civis-militares na América Latina não se enquadra no mesmo bloco histórico do fim das ditaduras fascistas e autoritárias após o fim da segunda guerra mundial, por exemplo. Algumas questões e embates políticos são mais “quentes”, como as discussões sobre políticas de memória e o papel dos militares nas ditaduras e nos processos de transição democrática na América Latina.

O caso brasileiro recente exemplifica que, além das transições democráticas recentes, o aspecto do militarismo (e o anticomunismo, assim como a defesa de uma sociedad autoritária) dá tônica às demandas das movimentações antidemocráticas, assim como a tensão institucional crescente. Por essa razão, é importante considerar que o aspecto global das crises das democracias e da ascensão das direitas, não pode acarretar a minimização do impacto dos aspectos locais e regionais, o que seria um equívoco.

Por essa razão, ainda que exista características efetivamente globais do fenômeno, é válido perceber que há tradições e padrões que fornecem um corte latino-americano e potencialmente iberoamericano, como argumentam autores como José António Sanahuja e Camilo López Burián. Ou seja, mesmo em um fenômeno que é global por definição, há zonas e espaços distintos, com suas devidas agendas e seus próprios mitos mobilizadores.

Isso não desmerece, claro, a influência dos EUA, seja na premissa histórica ou das novas ondas das direitas brasileira e seus efeitos. Como bem notado por Guilherme Casarões, alguns setores das novas direitas brasileiras incorporaram aspectos e padrões dos EUA, fundindo essas características a um rico caldo político previamente existente, ainda que aparentemente latente.

O desafio de análise está, sem dúvida, na árdua missão de interpretar que o caso brasileiro – seja as novas direitas ou o bolsonarismo - não é mera adaptação ou reprodução de um esquematismo das ultradireitas internacionais, mas que se inclui nela e também traz influências.

A estética trumpista ou da direita alternativa dos EUA, por exemplo, consegue impactar as dinâmicas das redes sociais e de campos conectados com a linguagens de outros movimentos internacionais. Os memes, algumas teorias da conspiração, inclusive algumas dinâmicas de pequenos grupos oferecem uma espécie de jogo de espelhos entre bolsonarismo, trumpismo e outras expressões no espaço global das extremas direitas. Mas no campo da mobilização coletiva, dos impactos institucionais, assim como do partilhar de questões regionais, o uso de uma linguagem comum, brasileira ou latino-americana, se mostrou importante para a efetividade de demandas das novas direitas, e particularmente do bolsonarismo.

Laboratório de extrema direita

Voltando ao 08 de janeiro de 2023, este é um evento ilustrativo. O avanço de indivíduos e grupos organizados contra prédios governamentais poderia soar como uma espécie de Capitólio 2.0. As bandeiras e palavras de ordem, no entanto, traziam as marcas locais: “intervenção militar já!”, “Fora Comunismo”, “artigo 142”, “Supremo é o povo”, etc. Uma análise apressada, e fixada exclusivamente nas performances dos indivíduos, argumentaria que este foi um resultado das radicalizações de indivíduos por meio de redes sociais e da importação de ideias alheias às problemáticas do Brasil e da América Latina.

Mas as demandas pela ruptura democrática com tons de militarização da sociedade brasileira seguiram um ritmo dialógico, à medida que setores militares se manifestaram complacentes à tentativa de golpe, ou mesmo foram participantes efetivos do processo. A estratégia completa não era apenas o ataque aos edifícios institucionais como finalidade fundamental, mas previa a instalação de um clima tensão crescente e incontornável. Esta tensão obrigaria o governo empossado a decretar a Garantia de Lei e Ordem (GLO) previsto no artigo 142, dispositivo excepcional que permite a gestão da segurança pública pelas Forças Armadas. Em termos práticos e seguindo a leitura equivocada do dispositivo constitucional, isto resultaria na presença ainda mais próxima dos militares ao poder, esvaziando o capital político do novo governo.

A disposição de setores das Forças Armadas em participar da política brasileira, e particularmente de movimentações antidemocráticas, não é algo inédito. No caso mais recente, este movimento integrou desde demandas de bases bolsonaristas até potenciais articuladores políticos, assim como a atualização das linguagens e repertórios, alguns deles presentes em outras realidades nacionais.

Por essas razões, analisar as novas direitas e suas relações com o bolsonarismo necessita compreender como que os padrões globais se integram às dinâmicas locais que, por sua vez, fornecem padrões situados na curta e longa duração, historicamente falando. Por meio desta trama e análise multidimensional e situada também historicamente, é possível interpretar as novas direitas, assim como seus desdobramentos, como o próprio bolsonarismo, a partir do sentido de criação de uma agenda própria. Logo, é necessário compreender que, em alguma medida, o caso brasileiro forneceu uma espécie de laboratório, com impactos visíveis sobretudo em dinâmicas regionais, como pôde ser verificado recentemente nos diálogos entre tendências bolsonaristas e a campanha eleitoral de Javier Milei, na Argentina.

Um ano após estes eventos, a sociedade brasileira precisa enfrentar um desafio. As novas direitas e suas diversidades retomam questões profundas na história política local, evocando tensões pouco resolvidas entre a sociedade civil, o Estado e as instituições. Reduzir o quadro brasileiro como um "capitólio tupiniquim" pode ser vantajoso por um lado, pois esmiuça as novas dinâmicas, as redes transnacionais e o impacto das big techs no fomento de ideias antidemocráticas e de um ecossistema de movimentos de extrema direita. Mas o evento em si tem raízes mais profundas, que envolvem a classe política, as forças militares, assim como as tradições mobilizadas. Antes de ser um subproduto das extremas direitas globais, o bolsonarismo é também um fenômeno alicerçado em bases sólidas. Compreender essas tramas é um grande desafio.


Odilon Caldeira Neto é historiador. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Suas atividades de pesquisa são dedicadas aos estudos da história política e social, principalmente sobre as direitas radicais e extremadas.

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