Um retrato de política e resistência negra no Brasil

Leia a introdução à última edição do NACLA Report.

June 17, 2022

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Sendo o Brasil um país de maioria composta por pessoas negras, 56 por cento da população total, esta é a maior população negra das Américas. Assim, toda e qualquer questão sobre política, economia, sociedade e cultura no Brasil tem a questão racial, melhor, a questão das desigualdades raciais como elemento central da análise.

Durante muito tempo, na academia e no senso comum, convencionou-se afirmar que o problema do Brasil seria o problema das desigualdades de classe. Esta perspectiva era compartilhada tanto pela direita, quanto pelo própria esquerda brasileira que se recusava a enfrentar e reconhecer o problema racial brasileiro. O mito da democracia racial, da harmonia entre as raças e a ideia de que a mistura racial eram principais indicativos da ausência de hostilidades raciais eram exemplos frequentemente utilizados para defender essa ideia.

Contudo, a partir da década de 1990, novos estudos dedicados a entender as relações raciais no brasil passaram a, com base em evidencias, questionar a tese de um país de relações raciais harmoniosas e igualitárias que sempre colocavam os Estados Unidos como contraponto. As imagens turísticas de pessoas negras sorridentes e festivas que circulavam no exterior, caricaturavam através de uma aparência carnavalesca um país cujo raio-x das desigualdades não poderia ser entendido sem que a vida de negros e brancos fosse analisada e comparada.

Na saúde, nos postos de representação politica, no mercado de trabalho, nas imagens que formavam o imaginário social, mas sobretudo na educação e nas condições de moradia, seria possível ver a existência de dois países, um de pessoas privilegiadas e outro de pessoas cuja vida era marcada por pobreza, ausência de direitos em diversos níveis, além de experiências pessoais das mais violentas e traumáticas motivadas por ódio racial.

Os números divulgados nas pesquisas dos anos 1990 e 2000 não revelariam uma novidade. Desde o final dos anos 1960 e 1970, portanto ainda durante a ditadura militar, movimentos sociais negros, organizações populares, muitas delas lideradas por mulheres, coletivos de trabalhadoras e trabalhadores negros já denunciavam o racismo como grande causador das desigualdades raciais no Brasil. Portanto, o movimento negro brasileiro, através dessa denuncia da falsa democracia racial, situava as condições de vida da população negra brasileira enquanto resultado da ausência de políticas de inclusão e garantia de cidadania que não aconteceram após o 13 de maio de 1888, quando o Brasil finalmente aboliu a escravidão.

A foto ao lado revela um importante momento dos movimentos negros no Brasil dentro dos movimentos de esquerda. Nela, um grupo de pessoas negras, adultos e meninos vestidos de vermelho, cores associadas aos movimentos sociais de esquerda, marcham na cidade de Salvador, maior cidade negras das Américas, numa caminhada do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra por volta do ano de 2002. Na imagem, meninos olham para traz inocentemente como se nos indagassem sobre como seria o futuro para o qual protestam por direitos. Nas suas camisas está escrito: “A ordem é ninguém passar fome”.

Marcha na Bahia, Brasil. Data desconhecida. (Arquivos de Rita Cliff)

Nos anos 2000, quando um trabalhador foi eleito presidente do Brasil, a vitória também foi resultado do engajamento dos movimentos negros que construíram o projeto político do governo Lula, trazendo propostas de políticas públicas para a população negra. Longe de significar o fim do racismo no Brasil, a participação das lideranças negras neste governo promoveram mudanças profundas na sociedade brasileira, sobretudo a partir da ampliação de direitos, sendo um dos mais importante o do reconhecimento do direito das trabalhadoras domésticas e adoção de políticas de cotas para negros nas universidades. Antes da Lei de Cotas, o número de pessoas negras nas universidades brasileiras não chegava a 3 por cento.

Este dossiê tem a pretensão do discutir os principais problemas do Brasil contemporâneo, ou seja, as questões cruciais que tem sido debatidas nos movimentos sociais, na cena pública, nas universidades e que tem pautado os rumos da política nacional.

Às vésperas de uma eleição presidencial, assistimos em disputa os campos da extrema-direta, representada pelo governo atual, e o possível retorno da esquerda ao poder, com suas coalizões diversas. Mais do que dois campos partidários, esta eleição significa, para o Brasil, a escolhe de um novo rumo político, ideológico e civilizacional. A depender do resultado das eleições, o Brasil consolida seu afastamento dos parâmetros mínimos de democracia ou a possibilidade de retomada (ou retorno) da sociedade brasileira ao mundo no qual sejam respeitados critérios guiados pela sua constituição nacionais, pelos órgãos internacionais de vigilância da saúde, mas sobretudo do respeito aos direitos humanos.

Assim, os artigos desse dossiê refletem esse momento bem peculiar da política brasileira, e principalmente para as pessoas negras do Brasil. Justamente durante um governo de direita ultra-conservadora, que ascende ao poder inclusive com a promessa de retirar esses direitos dos grupos sociais mais vulneráveis, é que somos impactados por uma pandemia na qual o Brasil ocupou entre a segunda e terceira posição no número de mortes.

No Brasil, pessoas negras morreram mais e foram as primeiras pessoas a serem contaminadas no território nacional: uma empregada doméstica do Rio de Janeiro que contraiu a doença pois cuidava dos patrões recém-chegados da Itália. Um porteiro em São Paulo. Uma outra uma trabalhadora doméstica na Bahia, cuja família empregadora também tinha acabado de chegar da Europa. Também são negras a maioria das pessoas que morrem (mais que o dobro), assim como aquelas que dependem do sistema único de saúde.

As condições de trabalho precárias aprofundaram-se ainda mais durante a pandemia do novo Coronavírus, o que aumentou o número de pessoas desempregadas, maior entre as pessoas negras. O Brasil voltou ao mapa mundial da fome, as escolas públicas apresentaram aumento no número de estudantes que deixaram de estudar, afundando o Brasil num retrocesso educacional de 20 anos. O feminicídio aumentou, assim como o abuso sexual de crianças, e continuaram as ações policiais nas comunidades matando pessoas negras, sobretudo os mais jovens, aos montes, escancarando o problema do genocídio e da violência policial como justificativa de combate às drogas. Também foi ampla nesse período as políticas negacionistas que negligenciavam a gravidade da pandemia, assim como as fakenews que disseminaram notícias falsas sobre o Sarscov2 desestimulando e atrasando o sistema de vacinação ampla da população, fruto da incompetência governamental no campo da saúde, educação e segurança pública. No final das contas, pesquisas demonstraram que tem cor, e também gênero, a maioria das pessoas impactadas de forma negativa por estas políticas e pelo aprofundamento das desigualdades: são pessoas negras, sobretudo as mulheres e suas crianças.

Assim, os artigos que compõem esse dossiê se propõem a ofertar à diáspora um registro desse momento: são artigos escritos por especialistas, ativistas e pesquisadores, no campo da saúde, das políticas públicas, dos direitos às populações LGBTQI+, pessoas atentas à questão do genocídio e encarceramento da população negra. Mas além disso, os artigos também tratam de como os movimentos sociais negros, e de mulheres negras, intelectuais engajados na luta anti-racista, além dos povos indígenas tem se articulado, organizado e fazendo frente às políticas genocidas: a arte, a organização de mulheres negras e os povos originários que disputam um lugar na política, sobretudo depois do assassinato de Mariele Franco, os debates recentes na academia sobre branquitude, sobre as políticas de ações afirmativas nas universidades e os acervos de memórias negras, preservados tanto nas comunidades tradicionais, quanto da produção cultural negra mais recente e urbana.

Portanto, este dossiê buscou evidenciar os afeitos da racismo, do sexismo e das políticas patriarcais excludentes sobre as populações afro-brasileiras. No momento em que a democracia agoniza no Brasil, e o autoritarismo faz experimentos anti-democráticos e demonstra seu poder através da supressão de direitos e violência sobre corpos negros, o mundo volta seus olhares sobre o que acontece e aconterá no Brasil nas próximas eleições. Por esta razão, é também nosso objetivo demonstrar como deste lado de diáspora, pessoas negras resistem, se organizam e mantem-se vivas...e elaborando estratégias de sobreviver e bem viver, de diversas formas.

Axé.


Luciana da Cruz Brito é doutora em história e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia-Brasil.

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