Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.
Durante mais de 20 anos de liderança política do povo Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, Rosivaldo Ferreira da Silva, cacique Babau, tem sido um incansável defensor dos direitos indígenas no Brasil, e da tradicionalidade da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada nos municípios de Ilhéus, Una, Buerarema e São José da Vitória, no sul da Bahia.
Com aproximadamente 47.376 hectares de extensão, e assim como em muitas outras terras indígenas no Brasil, o processo demarcatório da Terra Indígena Tupinambá de Olivença ultrapassou todos os prazos estabelecidos pela Constituição brasileira. A sua identificação foi iniciada em 2004 e Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) publicado em 2009, por portaria da Presidência da Funai, nos diários oficiais da União e dos estados e municípios envolvidos. Após indeferimentos das contestações, o procedimento foi encaminhado ao Ministério da Justiça em 2012. As contestações são uma etapa importante de qualquer processo demarcatório, estabelecido pelo Decreto Presidencial 1775, de 1996, quando pessoas, físicas ou jurídicas, que se percebem como prejudicadas pela demarcação têm 90 dias para apresentarem à Fundação Nacional do Índio (Funai) —órgão vinculado ao Ministério da Justiça, responsável por todo o processo demarcatório de uma terra indígena—, de modo documentado, suas contestações e contraditórios ao RCID. Do mesmo modo, as ações judiciais interpostas foram todas vencidas e superadas; entretanto, em 2019, o então ministro da justiça, Sérgio Moro, devolveu o processo à Funai, alegando a necessidade de uma suposta revisão. Os Tupinambá aguardam a portaria de declaração de posse da terra, que deveria ter ocorrido em até 30 dias após o indeferimento das contestações.
Os custos disso são imensos: perseguições, criminalização da luta, prisões arbitrárias de líderes e pessoas da comunidade, ameaças de morte e execuções. Após décadas de esbulho territorial, os tupinambá enfrentam o desafio de viver em um território ambientalmente devastado em quase sua totalidade. A região sul da Bahia foi marcada, a partir da segunda metade do século XIX, pela derrubada da mata atlântica e perseguição aos povos indígenas para a expansão da lavoura cacaueira. O monocultivo do cacau, um dos principais responsáveis pela cobiça e invasão dos territórios indígenas, no sul da Bahia, moldou o tipo de exploração capitalista da região e determinou os seus principais problemas ambientais.
Contudo, essa realidade se altera nas pequenas áreas que foram possíveis aos indígenas manter a posse, mesmo sob constante ameaça. Mais recentemente, em virtude da expulsão de muitos invasores e do avanço de ocupação de áreas anteriormente roubadas, o cenário tem se transformado. A cada retomada de terra, o esforço dos Tupinambá tem sido no sentido não apenas de reocupar o território propriamente dito, mas de fazer reviver distintas espécies nativas da mata atlântica. Esse exitoso processo de recuperação territorial e ambiental tem proporcionado o retorno de espécies animais, que há muito não se via, ao mesmo tempo em que se exerce um tipo de agricultura pautada na correlação entre pessoas, bichos e seres encantados presentes na cosmologia tupinambá.
Por isso, a luta Tupinambá, e a de Babau, em particular, têm inspirado e provocado um reconhecimento justo e genuíno. Em 2018, a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia lhe concedeu a mais alta honraria concedida por essa casa, a Comenda 2 de julho, que atribuiu a ele o título de Comendador. Anteriormente, em 2017, Babau havia recebido a 29ª medalha Chico Mendes de Resistência, uma condecoração da organização não-governamental Grupo Tortura Nunca Mais, entregue a pessoas que se destacam na defesa dos direitos humanos. Ano passado, Babau recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia, em mais um reconhecimento da sua luta e determinação na defesa dos direitos indígenas e de seu povo.
Mesmo com tanta notoriedade, Babau está com sua vida em constante ameaça e por isso faz parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH). Em 2019, por exemplo, ele encaminhou uma carta a diversas autoridades brasileiras e estrangeiras, entre elas, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), à época, ministro Dias Toffoli, e a procuradora-geral da República, à época, Raquel Dodge, onde denunciava as ameaças que vinha sofrendo. O caso passou a ser acompanhado pelo Ministério Público Federal pela Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS).
Nascido no sul da Bahia, Brasil, na própria aldeia Serra do Padeiro, Cacique Babau, como é conhecido, tem 47 anos de idade. Porém, sua luta é muito anterior a idade cronológica ou do tempo de liderança indígena. Como ele mesmo nos conta nesta entrevista, sua trajetória está ancorada na ancestralidade e na relação com os encantados, que formam o panteão da cosmologia Tupinambá. É também através dessa relação ritual, que ele nos explica o que é o território e porque a demarcação de terras indígenas é tão fundamental para o futuro da humanidade. Com uma longa relação com o mundo dos brancos, ele nos fala sobre aliança com o povo negro e explica a maior estratégia política dos povos indígenas, e dos Tupinambá em particular, conhecer bem o outro e estudar os inimigos.
Jurema Machado: No contexto da relação entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, muito se fala que em governos de regime de esquerda ou direita, os direitos indígenas, de alguma maneira, estão sempre sob ameaça. A política de genocídio do Estado acompanha essa relação. É frequente escutarmos no âmbito do movimento indígena brasileiro ou na política interna dos povos, palavras como luta e resistência. Gostaria que você falasse um pouco sobre o significado dessas palavras para o povo Tupinambá.
Rosilvado F. da Silva (Babau): Você fez uma pergunta realista. Não importa qual seja o governo de plantão, a disputa nacional pelos poderes sempre leva a tirar direitos dos povos indígenas de alguma forma. Quando o governo, não importa se é de direita ou de esquerda, a principal coisa que eles querem é ter domínio sobre as terras indígenas, não deixar os índios usufruírem plenamente de seus territórios. Isso é uma prática recorrente, não importa qual seja o comandante de plantão.
Sabemos sim, que tem uns que são piores do que outros. O povo ligado a esquerda gosta de conversar, negociar, mas nunca quer deixar de fato o índio ser livre e ter plenos poderes de seu território. Isso é um fato, que está posto aí, é só verificar a história. O povo da famosa extrema direita, ou direita, seja lá o que for, ele quer também usufruir o patrimônio do povo indígena, de alguma forma, e não quer nos deixar viver e existir. Qual o pior deles?
Tem aquele que permite a luta, o diálogo, o enfrentamento, a gente sabe que não avança o direito sobre as demarcações, o investimento necessário para os povos usufruírem corretamente seus territórios [referindo-se a governos de esquerda], mas hoje você vê a gravidade do que está posto. Terras indígenas não estão sendo demarcadas, as que estão demarcadas anteriormente estão sendo invadidas. Há o acirramento pra tirar tudo que o povo indígena tem. Um aspecto dos governos de esquerda é a visão de o índio ter que ocupar espaço de governo, espaço subalternos, por sinal. Eu vi muito seriamente quando muitas lideranças indígenas nossas, lideranças muito fortes, receberam muitos cargos de governo, indo para governo e esquecendo as bases.
JM: Qual o significado da luta e da resistência com a ideia de território? Fala um pouco sobre o que é autonomia para o povo Tupinambá e qual a relação de luta, resistência, autonomia com o território.
Babau: Eu encontrei, no Brasil indígena, uma outra forma de território diferente do território que é Tupinambá de Serra do Padeiro, que quando a gente informou o que era território para nós, chocou alguns. Quando nós, Tupinambás da Serra do Padeiro, informamos ao governo que o nosso território, era território espiritual, que deveria ser demarcado para os encantados, mas para uso dos humanos, que somos nós. Então há duas formas de território, o território que eu, cacique Babau, e sei que aqui na Serra do Padeiro, todos defendem, é o território espiritual, que nós precisamos de uma demarcação sem a intervenção de terceiros para continuar.
Nós vivemos no ritual, nos torés, fazendo orações, fazendo homenagem a Tupinambá, nossos encantados, nossos ancestrais, por isso o território é deles e nós somos usuários para fazer as pessoas na terra saberem que existe vida fora daqui e que nós somos protegidos por essa força espiritual que nos guia nessa terra. Certa vez, expliquei para o governo, que tinha proposta de dividir nossa terra, porque eles não poderiam fazer isso. Nós temos um clã Tupinambá, mas um clã que é espiritual. Eu falei “vocês podem comprar o ser humano, podem matar o ser humano, podem subornar os seres humanos, mas o clã de Serra do Padeiro é de Tupinambá e dos filhos de Tupinambá [entidades rituais], ninguém pode tocar”.
Eu estou falando que o nosso clã é o clã Tupinambá, é Erú, Beri, Sultão das Matas, Gentil, Lage Grande [encantados da cosmologia Tupinambá da Serra do Padeiro]. Muita gente não entende, não sabe do que se trata, não sabem que são encantados poderosos, filhos de Tupinambá, que comandam as nações Tupi. Tupinambá é uma terra sagrada, é uma terra que ela é de uma ancestralidade, que nunca morreu e nunca vai morrer e que nós estamos aqui para deixar existindo na terra, cuidando de nós aqui. Todos os parentes que foram espalhados pelo mundo têm para onde voltar, sabe que tem uma casa de Tupinambá para voltar e quando eu falo dos parentes, inclusive outros povos, outras nações. Então é isso, território é local de força e poder, de vida e existência.
JM: Como o movimento indígena está inserido no contexto mais amplo das mobilizações sociais no Brasil? Existem alianças possíveis com outros povos e movimentos?
Babau: Tem que ter aliança, Jurema. Nós da Serra do Padeiro dialogamos com todos os movimentos, conversamos com todos, e criticamos quando é para criticar qualquer um deles. O movimento indígena é um movimento forte, é um movimento vigoroso que ganha expressão rapidamente, que por nós ser povo de bando, (de quantidade), então nós nos agrupamos muito rápido, e reagimos também quando somos atingidos. Isso aí acho que não é novidade, né? Mas o movimento indígena se abriu bastante, já está dialogando bastante, só que recentemente, eu tenho falado “para nós avançarmos, vamos ter que fazer algumas alianças mais fortes”.
Eu falei recentemente com Nêgo Bispo [Antônio Bispo dos Santos, poeta, escritor e intelectual quilombola. Importante ativista político nos movimentos de luta pela terra, no Brasil], e falei também com Komanaji [Taata Raimundo Komanaji, líder religioso de uma das maiores nações de Candomblé, no Brasil. Ativista contra o racismo e Presidente da Associação Cultural de Preservação ao Patrimônio Bantu], em uma live que eu tive com o povo Bantu, recentemente. Eu disse “precisamos criar um conselho do povo indígena e do povo preto, para se reunir pelo menos duas vezes por ano, para tratar de assuntos comuns. Eu disse olha “os próximos dez anos vão ser críticos no Brasil, na luta indígena e negra”, porque se nós não soubermos lidar vai ter um confronto entre povo indígena e povo negro. Por que até agora não houve confronto? Porque não houve disputa, na mata, por território.
Mas agora o índio estudou, o índio foi se formando e foi descobrindo que ele não vive só na mata, então, surgem os índios nas cidades, e os índios urbanos são muito numerosos no Brasil. Vai começar o primeiro confronto porque o povo preto declara que o pardo é negro, e o povo pardo pode escolher dizer “não, eu sou indígena”, e aí vai começar a tremer a quizila.
Anteriormente, você sabe que eu questionava falaram de índio descendente. Nós não somos descendentes. Um alemão quando casa com uma brasileira e tem um filho, ele fala que o filho dele tem dupla nacionalidade, ele não fala que é mestiço e nem fala que é descendente. E por que que nós indígenas somos mestiços ou descendentes? Por exemplo, um filho que um Tupinambá tem com uma brasileira, que não é Tupinambá, ele tem dupla nacionalidade, uma nacionalidade brasileira e uma nacionalidade Tupinambá. Se for uma mulher africana, nós temos a nação Tupinambá e uma nação africana, qual é? Qual delas? A Nagô? Ou Bantu? Qual povo? Mas pertence às duas nações, mas não é mestiço. Mestiço é preconceito, e então, eu bati muito nisso. E agora, que o povo pardo está enxergando e está dizendo “não, nós estamos criando as aldeias urbanas, nós somos indígenas e estamos aqui e nossa história é essa”. Ok. Isso é ótimo, mas aí o povo preto que sempre ocupou essa parte dos pardos vai se sentir ofendido. Porém, se nós trabalharmos antes, porque o branco, Jurema, vai usar isso para botar os dois para guerrear como sempre fez. Sabe por que? Porque os de má fé vai usar isso contra os dois.
Nos próximos dez anos, o maior enfrentamento no Brasil não vai ser no campo, vai ser na cidade, por esses dois grupos, por que não criar um conselho antes do conflito começar? E começar a trabalhar para o branco não usar a discriminação para nós guerrear entre nós? Então, eu coloquei desde já uma aliança forte. Olha bem, Salvador, você sabe que tem Tupinambá em todos os pontos de Salvador, tem muita pessoa que se declara negro hoje mas na hora que balançar o maracá em Salvador eles vão dizer “ah, mas eu também sou Tupinambá”. É um quilombo aldeia ou uma aldeia quilombo, depende, se uns quer constar como índio e quer também dizer que é quilombo, não se preocupe, eu sou aldeia quilombo. Sou descendente do índio tal com a nação tal africana, quero que me reconheça como aldeia quilombo. Não se preocupe, quero que a FUNAI reconheça o meu direito como indígena e o governo reconheça os meus direitos como quilombo, porque o futuro nosso, principalmente os índios do nordeste e de outras partes tem que defender as aldeias quilombo, porque as pessoas têm dupla nacionalidade, tanto da África como a Indígena.
Eu falo isso, quando foi trazido os negros para o Brasil, as senzalas do nordeste até o interior de São Paulo, estavam repletos da nação Tupi com sua maioria povo Tupinambá. O povo Tupinambá resgatava sempre os aprisionados, quando trouxeram os africanos e botaram aprisionados, os Tupinambá iam resgatando o povo preto que estava na senzala e levando para formar os primeiros quilombos. Foram os Tupinambás que levavam aqueles negros para suas aldeias. Na frente era aldeia e no fundo da aldeia ia juntando o quilombo. Depois os Tupinambás migravam, mas deixavam filhos com os negros, ficavam todos os filhos no quilombo. E aí, os Tupinambá se mandavam, e eram um povo com dupla nacionalidade já a partir daí, né?
Então nós não podemos fazer uma guerra agora por questões de ego político. O povo Tupi tem que conhecer profundamente a nossa história e tem que defender conjuntamente com o povo preto o direito de existir. É preciso o reconhecimento que no Brasil tem direito a ter aldeia quilombo e quilombo aldeia. Acho que o movimento tem que se juntar.
JM: Este ano temos eleições para a presidência, qual a expectativa dos povos indígenas? Qual a medida da participação indígena na política eleitoral?
Babau: Tem aumentado a participação indígena exponencialmente na questão política, apesar que eu tenho meus questionamentos que não está sendo da forma totalmente correta, podia ser mais forte politicamente sem precisar se partidarizar. Como povos originários, eu acho que nós não deveríamos levar nosso direito de ancestralidade para partidarização política, mas, ao mesmo tempo, estou revendo a nossa participação política como cidadãos que cobram seus direitos em um país dominador. Quero meus parentes em uma política forte, cobrando, participando.
Joênia [Joênia Wapixana, indígena deputada federal] está sendo fantástica. A eleição de Joênia é diferente da eleição de Juruna, né? [Mário Juruna, indígena do povo Xavante, deputado federal no período 1983-1987]. O certo é que Juruna foi levado do Mato Grosso para o Rio de Janeiro, e Brizola [Leonel Brizola, expoente político da esquerda brasileira] fez campanha e elegeu, certo? Joênia já é fruto do movimento indígena, com a consciência do movimento indígena, uma índia que se tornou advogada, uma índia que se tornou defensora do seu povo supremo e defende o seu povo até o último instante.
Ela tem uma luta para mostrar, tem uma lógica dela estar na política. Mas em muitos casos o que está acontecendo não é bem isso, os políticos, os partidos estão cooptando indígenas de todo jeito, jogando na política e dividindo as aldeias e criando rivalidades dentro das aldeias, ou seja, quando você chega dentro de uma aldeia, Jurema, e tem político, índio candidato, a eleição de vereador, por exemplo, ai você vai encontrar índio PT, PSOL, Democratas, PMDB, teve PSDB, é tanto partido, e nisso a gente pode se perder.
Nós não estamos discutindo polarização no Brasil, nós estamos discutindo o certo e o errado. Nós estamos discutindo o certo e o errado, e eu tenho certeza, os índios, na sua maioria, vai marchar com o PT porque está formando aliança mais forte para derrotar a “antivida”, aquele que é contra a vida, contra existência de todos. Então nós vamos marchar, numa luta objetiva. A gente se segurou esses últimos três anos porque temos o Supremo Tribunal Federal, os índios estariam em situação bem pior se não fosse o Supremo Tribunal Federal [a mais alta instância do Poder Judiciário, no Brasil. Dentre as suas atribuições estão garantir a constitucionalidade de muitos processos, como aqueles que envolvem a regularização dos territórios indígenas no Brasil, quando esses são judicializados].
E nós precisamos trazer a normalidade, a normalidade é varrer o que está aí e, varrer o que está aí, Jurema, não é só tirar Bolsonaro. Temos que tirar Moro [Sergio Moro, candidato a presidência em 2022] da jogada. Moro e Bolsonaro são idênticos, são iguais, o propósito é o mesmo, a morte do povo preto e do povo indígena é a meta dos dois. Não se engane, é tanto que o exército ou está com Bolsonaro ou quer estar com Moro, estão divididos entre os dois, vê se nos outros eles querem ir. E nós não podemos cometer esse erro de novo.
Então esse ano nós vamos estar fortes na política, vamos agir fortemente, vamos fazer as campanhas, vamos botar a cara, vamos fazer acampamento Terra Livre, nós vamos mostrar que além de ser indígena nós também somos politizados da nossa forma. Isso estou falando e não sou filiado a partido nenhum, e não aceito me filiar a partido algum porque nós temos que defender o direito originário, e cabe aos políticos eleitos cumprir nosso direito originário se não nós temos que fazer uma guerra no país para defender o direito a existência, o direito a existir. Então é isso, a política este ano vai ser isso, luta.
JM: Como você descreve a política Tupinambá?
Babau: O povo Tupinambá é um povo de diálogo, gosta de conversar com todo mundo, brincar, sorrir, mesmo na guerra, se não estiver sorrindo, ele nem guerreia porque tem que ter felicidade para fazer algo. E a felicidade Tupinambá era o segredo, conversar com o outro, extrair conhecimento do outro, e aí que é a arapuca do Tupinambá. Ele tem sabedoria, mas ele acha que a sabedoria dele só não é boa suficiente, se ele não conhecer a sabedoria do outro. Então, a política Tupinambá é o outro.
No passado [referindo-se aos Tupinambá quinhentistas], quando Tupinambá fazia guerra com outro grupo para capturar um guerreiro poderoso para comer, era para fortalecimento, não é porque tem ódio. Era também para o outro saber que não pode ficar sentado, ficar calado, ficar apático, ele tem que estar ativo, atento, que a qualquer momento o perigo vai chegar. O perigo pode surgir a qualquer hora, a qualquer momento, quando você menos imagina, mas também não pode viver assombrado, você tem que aceitar, e outra coisa, todos os inimigos Tupinambá, que se considera inimigo, é convidado sempre para ir na casa de Tupinambá, bater um bom papo, aquele que tinha inimigo próprio vir também conversar ou dialogar e depois fazer a escolha, se guerreia, ou se resolve se afastando.
A colonização veio para nos destruir, e não conseguiu por causa dessa sabedoria. Nós conversamos com todo mundo, o que não fazemos na política Tupinambá é deixar o nosso conhecimento pelo conhecimento do outro, isso não. Nós mantemos sempre os nossos conhecimentos e conhecemos o do outro, também. Por isso é mais fácil de lidar com o outro, se você conhece o pensamento.
Meu avô dizia “como é que você vai para uma guerra sem saber nada do outro?”. Não, você primeiro vai conhecer seu adversário, você vai ter que conhecer, saber como ele anda, como ele pensa, como ele guerreia, se você souber como ele pensa, como ele anda, como ele guerreia, você vai ganhar, você tem um passo a mais, você vai saber se posicionar. Nesses três anos, que agora entrou no quarto ano desse governo, nós ficamos estudando todas as políticas. Nós estudamos como ele agia, vimos como ele confundia a sociedade para depois agir na surdina. Então, essa é uma política Tupinambá e a principal dela é nunca depender de terceiros, você pode se apoiar em terceiros, mas que não seja uma dependência, você tem que ter autossuficiência sempre. Essa é uma política que nós estamos fazendo no dia a dia.
JM: O que significa para a sociedade brasileira a demarcação e proteção dos territórios indígenas? Por essa política interessa a todo o povo brasileiro?
Babau: Olha, a formação do país brasileiro, ele foi na formação que eu te falei naquela pergunta inicial de apagamento daqueles que incomodavam o projeto colonial, os povos negros e a nações indígenas. Para invisibilizá-los se dificultou o acesso a escola, o acesso ao conhecimento. Apagaram o povo e o povo indígena eu da história. Cinco séculos de apagamento da existência das nações indígenas, dadas como extintas, colocavam nos livros ensinando em todas as universidades, todas as escolas, naquela cidadezinha, naquele povoadozinho, daquela rocinha, dizendo “índio não existe mais”, “foi extinto”, era assim. Então isso foi colocado para a sociedade, e então no dia que disser “vai ter uma demarcação de terra indígena”, vem o choque “eu estudei a vida toda que esse povo não existe, por que que vai demarcar terra para quem não existe?
Aí inventaram a figura do caboclo, que para algumas pessoas deixou de ser índio, eles diziam que nós não éramos mais indígenas, e sim caboclos, por causa da mistura. Sempre teve demarcação de terra indígena, no período do Império teve demarcação, a nossa resistência foi permanente. Mas invisibilizaram isso para o país. O próprio Estado, responsável pelas demarcações, mostrar a importância das demarcações indígenas, qual o ganho para o país., de mostrar o quanto foi invisibilizado, esse povo foi escondido, você entendeu (risos).
Quando Lula foi presidente a primeira vez, nós acreditávamos que ele ia fazer uma campanha nacional de descriminalização, isso não aconteceu, inclusive demarcou menos terra que Fernando Henrique Cardoso. Olha bem que contraditório. Aí Dilma entrou, foi pior ainda, nem recebeu nós povos indígenas enquanto presidente. Bolsonaro, dispensa comentários. Como a sociedade brasileira não vai odiar demarcação de terra indígena? Não vai odiar os povos indígenas, se nossos governantes não abrem os braços para nos receber, não compreende nossa existência?
Então aí eu digo, respondendo a pergunta final que você fez, qual é a importância da terra indígena para o Brasil? Aquilo ali, todo brasileiro tem que entender que o índio fez uma luta para reservar a terra, e dizer “é minha”, não. É uma terra que um povo indígena faz uso, eu sempre digo “nós somos usufrutuários” de uma terra pública, do povo brasileiro, e nós quem protegemos essa terra, garantimos a existência da fauna, da flora e dos muitos brasileiros. A história, a resistência desse país, a memória ancestral desse país está nas terras indígenas. As pessoas precisam entender que as terras indígenas estão protegendo o clima, as terras indígenas é que estão fornecendo água, vento fresco e sabedoria para a sociedade, então por isso que toda sociedade precisa compreender não só a demarcação das terras indígenas, mas também as quilombolas tem o mesmo preceito das terras indígenas.
JM: Tem alguma coisa que você queira dizer, que você acha que é importante registrar?
Babau: Os povos indígenas são interligados, não importa aqui ou Estados Unidos, todas as Américas, os povos são irmãos. Então não nos matem em nenhum desses lugares. Os Estados Unidos matam demais, matou demais, e mata. A Argentina está ali massacrando os povos indígenas, principalmente os Guarani e Mapuche. Então é preciso ter essa consciência da nossa importância, da nossa existência.
Jurema Machado de Andrade Souza é antropóloga, professora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Cahl/UFRB. Nascida em Salvador, foi criada no recôncavo, na cidade de Cruz das Almas, Bahia.
Rosivaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como Cacique Babau, é liderança Tupinambá da Serra do Padeiro, localizada no município de Buerarema, na Bahia.