Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.
Diziam que o virus era democratico, era o discurso que ouviamos no Brasil, logo no início da Pandemia, que todas as pessoas estariam no mesmo barco, mas não foi isso que vimos com o primeiro caso de óbito em decorrência da Covid-19 no país. Não foi isso que vimos com a historia de Cleonice Gonçalves, de 63 anos que na manhã de 17 de março de 2020, estava com dificuldade para respirar. Ela havia se internado no hospital perto de sua casa na área montanhosa na periferia do Rio de Janeiro após ficar doente repentinamente no dia anterior enquanto trabalhava como empregada doméstica em um apartamento de luxo no Rio. Ela foi a primeira vítima fatal da Covid-19 no Rio e uma das primeiras no país.
A chefe de Gonçalves tinha viajado recentemente para a Itália e suspeitava que tinha pegado coronavírus, mas não contou a sua empregada, de acordo com as autoridades de saúde locais. Como muitos com empregos semelhantes, Gonçalves nunca teve a oportunidade de ficar em casa e se proteger. Sua história se tornou emblemática da condição de muitos trabalhadores brasileiros vulneráveis, a maioria mulheres negras, que não receberem suporte para continuar em isolamento e tiveram que arriscar o contágio para continuar a trabalhar. O trabalho doméstico não é um serviço essencial, exceto para uma sociedade racista patriarcal.
A pandemia da Covid-19, com sua capilaridade devastadora, encontrou terreno fértil nas sociedades com desigualdades prévias de raça, gênero, classe e território. Mulheres, grupos racialmente oprimidos, populações que vivem em contexto de privação são as mais impactadas, de forma direta e indireta, pelas crises humanitárias (econômicas, ambientais e sanitárias). Suas condições de vida precária se somam ao cotidiano de violação de direitos. Para as mulheres negras, que estão na base da pirâmide social brasileira e são as que menos têm acesso ao mercado formal de trabalho e a bens e serviços como educação, moradia e saúde. O racismo e suas manifestações estão enraizados na vida social dos grupos e classes sociais no Brasil, atingindo de forma perversa pessoas negras. E as mulheres negras sofrem com o encontro do racismo e do sexismo, isto significa sofrer todas as consequências de um Estado racista patriarcal.
A filosofa afro-brasileira Sueli Carneiro diz que mulheres negras sofrem com o fenômeno da dupla discriminação social, em consequência da conjugação perversa do racismo e do sexismo, que resulta em uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida. O sistema de opressão de raça-gênero-classe aprisiona e empurra as mulheres negras para esse loop histórico de desvantagens e violências, que se agudiza em contextos de pandemia e outras crises globais.
Desigualdades previas e pandemia, uma questão interseccional
A pandemia do novo coronavírus se apresenta como um desafio para a humanidade, por conta da sua gravidade, forma de contágio, além da sua interação com doenças prévias, principalmente as crônicas (câncer, hipertensão, diabetes entre outras). Tem sido difícil implementar as medidas de prevenção da Covid-19, sobretudo em sociedades como o Brasil, com profundas desigualdades internas. As desigualdades estão presentes nas medidas de prevenção, no acesso ao diagnóstico/testes de Covid-19, no acesso ao tratamento/hospitalizações, no risco de óbito e nos impactos sociais e econômicos causados pela pandemia. O distanciamento, isolamento, uso de máscara, medidas de higiene são universais, mas não têm alcançado as mulheres negras de forma igualitária, pois para isso é preciso equidade.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio-PNAD/IBGE (2018), cerca de 47,8 por cento das mulheres negras estão inseridas no mercado de trabalho informal, enquanto as mulheres brancas são 34,7 por cento, homens negros 46,9 por cento e os homens brancos 34,7 por cento. Vemos que em relação à informalidade as mulheres negras se aproximam dos homens negros. Aqui observamos o racismo institucional. Tanto as mulheres negras quanto os homens negros encontram mais barreiras para acessar o mercado de trabalho. A taxa de desocupação é sempre maior para elas e eles, e pior nesse contexto da pandemia. Do quarto trimestre de 2019 ao segundo trimestre de 2020, a taxa de desemprego subiu de 15,6 por cento para 18,2 por cento para as mulheres negras, de 10,6 por cento para 14 por cento para homens negros, de 10,1 por cento para 11,3 por cento para mulheres brancas e de 7,4 por cento para 9.5 por cento para homens brancos. Não há possibilidade de aderir ao isolamento nessas condições, pois são pessoas obrigadas a seguir procurando por trabalho pela necessidade de sobrevivência, com longos deslocamentos, usando transportes públicos nas grandes cidades ou acessando, de forma precária, serviços informais, como a uberização.
Por outro lado, são as mulheres que estão mais inseridas no mercado formal do cuidado, que em grande medida é essencial. Esta é uma área demarcada pelas hierarquias de gênero, sendo que nela, as mulheres negras estão submetidas à intersecção das opressões de gênero e raça. São majoritariamente mulheres que estão na linha de frente como trabalhadoras da saúde, ocupando os lugares de maior exposição à contaminação pelo novo coronavírus em trabalhos que, na maioria das vezes, são precários e insalubres. Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), de todos os profissionais de enfermagem no Brasil, 86 por cento são mulheres e 53 por cento são negros, com enfermeiros negros atuando desproporcionalmente em cargos de apoio de linha de frente como auxiliares e técnicos de enfermagem.
Vale lembrar a epidemia mais recente, do vírus Zika, e suas consequências para as mulheres negras jovens do Nordeste do país, considerando que quase 70 por cento da população desta região é composto por pessoas negras e que neste mesmo território há uma precarização no que se refere a atenção a saúde e saneamento básico, dados da última pesquisa censitária realizada pelo IBGE revelam que 7.2 por cento dos domicílios nordestinos não tem acesso a agua canalizada, enquanto o Sud e Sudeste somente 0.2 por cento estão na mesma situação. São mulheres que vivem com acesso irregular a serviços de saneamento básico, sofrem barreiras no acesso a serviços de saúde reprodutiva e são elas, em grande parte, as responsáveis pelo domicílio.
Em 2020, o primeiro caso de morte materna por Covid-19 foi de uma jovem negra no interior da Bahia. Rafaela de Jesus Silva morreu em 1º de abril de 2020 em Itapetinga, Bahia de complicações relacionadas ao coronavírus uma semana após o parto. Seu companheiro suspeitou que ela contraiu o vírus depois de dirigir o veículo que sua empresa usou para transportar uma festa de casamento em 14 de março.
Quando a pandemia da Covid-19 se instalou Brasil, encontrou previamente um processo de estagnação seguido de retrocessos no que se refere a agenda dos direitos reprodutivos e na política de saúde das mulheres. Por consequência da pandemia de Covid- 19 houve um crescimento de 20 por cento dessas mortes maternas, seguido do incremento do dobro desta taxa no ano subsequente (15,6 por cento em 2021 e 7,4 por cento em 2020). Em meados de 2021, o Brasil havia registrado 1.114 mortes de grávidas ou puérperas por Covid-19, e a maioria, cerca de 77 por cento, era de mulheres negras, segundo o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).
Importante destacar a melhoria da atenção obstétrica nos últimos anos, principalmente no acesso ao pré-natal, por meio da ampliação da cobertura da atenção básica, com programas estratégicos como Saúde da Família, que em certa medida, reduziu as desigualdades raciais, regionais, socioeconômicas no acesso aos serviços. Porém, mesmo com a implantação de um programa direcionado para a melhoria da Atenção Obstétrica, a Rede Cegonha, programa de Atenção Materno infantil do Brasil, não foi suficiente para reduzir as disparidades que ainda permanecem para as mulheres negras, pobres, de baixa escolaridade, de periferia, das regiões Norte e Nordeste, sendo as mais afetadas pela falta de acesso aos serviços de saúde e as mais expostas aos desfechos desfavoráveis como a morbimortalidade materna.
O cenário brasileiro aponta que a falta de acesso, acessibilidade e qualidade da assistência às mulheres nos serviços, o que revela a violação ao direito humano à vida e a igualdade no acesso à saúde. Existe uma relação direta das causas de morte materna, o acesso e a qualidade da atenção, visto que são causas evitáveis.
Rompendo o loop
O contexto pandêmico se associa a todas as violências pré-existentes e tem sido um grande desafio olhar para o futuro e para a humanidade. As medidas universais de prevenção da transmissão da Covid-19 seguem um padrão que não reconhece as dinâmicas das desigualdades e as interseccionalidades, que nesse momento estão adensadas. De acordo com a feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos (raça-gênero-classe), constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.
A tirania do urgente que trata das implicações de negligenciar questões de raça, gênero e opressões correlatas diante das crises sanitárias, políticas e econômicas, com isso deixa de fora o que deveria ser o centro das políticas, das iniciativas, ou seja, as desigualdades e as violações de direitos que se expressam. Por exemplo, a redução dos serviços de aborto legal no Brasil em torno de 55 por cento no início da pandemia porque foi considerado serviço “não essencial”, justamente em um momento que ocorreu, o aumento das violências sexuais. Um dos casos permissivos para o acesso ao aborto legal no Brasil é no caso da mulher sofrer violência sexual.
O loop das desigualdades, como se interrompe esse ciclo? As informações do Cadastro Único (que direciona diversos programas sociais do Brasil, entre eles, o Bolsa Família) revelam que a população negra representa 68 por cento, e desses, 39 por cento são mulheres. Fazem parte desse cadastro pessoas que vivem em privação extrema, em pobreza extrema, e seu conjunto revela o ciclo da pobreza, e evidencia seu componente de raça, gênero e região. O ciclo da pobreza é o loop do racismo que sistematicamente tem ceifado vidas negras, perpetuando o racismo genderizado, a transfobia racializada, o racismo que define quem vive ou quem morre, o genocídio. Deixar viver, deixar morrer, é desta forma que as sociedades estruturadas pelo racismo organizam as vidas de pessoas negras e brancas. As estruturas coloniais hierarquizam a humanidade, dos brancos europeus como “plenamente humanos”, enquanto “os povos indígenas das Américas e os africanos escravizados foram classificados como não humanos em espécie”. A antinegritude é o fundamento da humanidade porque “o ser moderno se define em oposição ao não ser negro”.
Vejo caminhos para interromper este loop. Vejo caminhos com a participação das mulheres negras, das mulheres de modo geral, da população negra e de pessoas trans nos espaços de tomada de decisão, de implementação de políticas públicas e de controle social, sendo de fundamental importância, para o reposicionamento da sociedade, a representação política populacional igualitária e equânime. Os corpos negros, das mulheres negras, têm o direito de circular, girar em torno da vida, nas estatísticas do bem viver. Para isso o movimento de mulheres negras tem feito muito ao longo do tempo. Mas precisamos de um Estado que responda a mais da metade da população, um Estado que responda para a maioria, para que um dia os corpos das mulheres negras só carreguem águas e histórias sobre nós.
Emanuelle F. Goes é pós-doc do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde-Fiocruz Bahia, Salvador, Bahia, Brasil; research fellow no Ubuntu Center on Racism, Global Movements & Population Health Equity, Drexel University Dornsife School of Public Health, Filadélfia, Estados Unidos; e pesquisadora da Iyaleta - Pesquisa, Ciência e Humanidades.