Não sou bicho, sou mulher!

O direito humano ao próprio corpo é aquilo que perdemos quando somos escravizadas e/ou presas.

June 27, 2022

"Não sou bicho, sou mulher!" 2017. (Denise Carrascosa)

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.


Direito Humano

Eu, Ivonildes, estou aqui para contar um pouco do sofrimento e maus-tratos que estou passando aqui no presídio. Eu fiz uma cirurgia no dia 07 de março. Começou pelo erro do médico, que fez minha cirurgia como se eu fosse um cachorro. Ele fez a cirurgia, costurou a minha barriga, não drenou e aí veio o sofrimento: a minha barriga começou a inchar; eu fiquei no desprezo; aí eu pedi para passar para o médico aqui no presídio. Como ninguém queria saber o que eu estava sentido, eu comecei a guerra pela minha saúde. Até policial da PM e GEOP invadiu o presídio, por que quem sente sua dor é que geme. Eu pedi, pelo menos, um medicamento. Elas não me deram e eu chamei a atenção do presídio todo, pois estava morrendo de dor.

Depois que viram que a coisa estava ficando séria, elas me levaram para o mesmo hospital, mas o médico que me operou não estava. No momento, tinha outro lá. Ele teve que abrir dois pontos. Quando abriu, eu fiquei abismada. Saiu muita secreção e o médico falou que se eu demorasse mais uns dias, ia dar uma infecção que poderia me matar. Fiquei com medo, sim e foi aí que comecei a lutar pelo meu direito.

Com meu curativo ensopado, pedia para ela trocar e ela não queria. Chegou dia de meu curativo passar de 24 horas. Estava ficando mal-cheiroso e a gaze azulada. Meus remédios tive de tirar do bolso. Então, chegou ao ponto de eu não querer entrar na cela até que trocassem meu curativo. Chamaram a polícia pra mim. Os policiais chegaram brutos. Queriam me agredir.  Mas as prezadas do plantão disseram que eu estava operada. Eu sei que aqui no presídio, quando a gente luta pelos nossos direitos, elas acham ruim. Então, me colocaram na tranca operada. Vocês têm que vir aqui dentro pra vocês verem quantas internas sofridas têm aqui sem medicamento. Peço que venham um dia aqui ver todos os sofrimentos.”

Através desta narrativa que me chegou em um dia comum de aula na penitenciária feminina do Estado da Bahia, em Salvador, conheci Ivonildes. Nós, Corpos Indóceis e Mentes Livres ensaiávamos o texto da performance “Não sou bicho, sou mulher”, a ser apresentada dali a um mês, quando me passaram um bilhete enrolado em forma de canudo por um pequeno furo da janela coberta por um gradeado que separa o berçário do pátio.

O Coletivo Corpos Indóceis e Mentes Livres é uma organização de mulheres negras presas, não presas e que já passaram por encarceramento. Somos trabalhadoras, artistas, professoras, artesãs, advogadas e defendemos o antiproibicionismo e o abolicionismo penal em uma perspectiva antirracista e antissexista.

Nesse sentido, há 12 anos, trabalhamos em 5 frentes: 1) desmistificação da função ressocializadora do sistema prisional para quem está presa e quem não está; 2) controle social externo da administração penitenciária; 3) remição de pena de mulheres sentenciadas através de oficinas semanais de leitura e escrita literárias, para as quais construímos a Biblioteca Mentes Livres no Conjunto Penal Feminino da Bahia (2013); 4) circulação de Artes Negras no presídio feminino para reduzir os danos causados pela violência prisional e colaborar na construção de consciência política negra, de gênero e classe de nossas irmãs encarceradas; 5) visibilização da produção literária e intelectual de mulheres presas, sempre organizada em um livro-coletânea ao final de cada edição (poemas, contos, cartas, performances).

“Não sou bicho, sou mulher!” foi uma performance criada e apresentada por mulheres presas e não presas em 2017, dentro da Penitenciária Feminina da Bahia, com a minha direção artística e parceria de presença cênica da atriz de teatro Márcia Lima e da performer Val Souza. Esta performance convocava a sociedade a testemunhar a condição trágica de existência de mulheres presas, em sua absoluta maioria negras e pobres; bem como fazia uma denúncia pública da tortura prisional a que estavam submetidas.

"Não sou bicho, sou mulher!" 2017. (Denise Carrascosa)

Tendo em vista o fato de nosso trabalho abolicionista ter sido interditado pela administração penitenciária da unidade prisional feminina na qual trabalhávamos havia sete anos ininterruptamente àquela altura, construindo acesso material jurídico a remição de pena de mulheres sentenciadas, fizemos uma articulação política com a professora Angela Davis, na ocasião de sua conferência em Salvador, na reitoria da Universidade Federal da Bahia, planejada por organizações de mulheres negras que arquitetam a agenda política de visibilização das lutas feministas negras —Julho das Pretasem homenagem ao 25 de julho: Dia Nacional de Tereza de Benguela e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, dentre as quais sublinhamos o Instituto Odara (coordenado pela ativista feminista negra Valdecir Nascimento) e o Coletivo Angela Davis (coordenado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahiapela professora ativista feminista negra Ângela Figueiredo).

A denúncia solidariamente repercutida pela filósofa feminista abolicionista Angela Davis a uma audiência de dezenas de milhares de pessoas por todo o Brasil, de forma televisionada e através das redes sociais, demandou a escrita de uma petição pública em que centenas de pessoas, principalmente mulheres negras, exigiam o imediato retorno do projeto ao presídio feminino. Isso é o que aconteceu poucos meses depois, quando o Coletivo Corpos Indóceis e Mentes Livres constituiu uma comitiva de mulheres negras, integrada por Conceição Evaristo (escritora e professora), Vilma Reis (socióloga e ativista abolicionista), Lívia Vaz (promotora de justiça do Estado da Bahia), Luciany Aparecida (escritora e professora), Márcia Lima (atriz), Val Souza (performer) e Denise Carrascosa (professora e ativista antiprisional), comitiva de sete mulheres que esteve reunida na Secretaria de Administração Penitenciária, durante mais de três horas, para convencer o Estado a fazer o projeto retornar.

A carta de Ivonildes entrou rasgando o espaço, o tempo e as palavras do ensaio do texto dramático que montávamos.  O drama ali escrito inscrevia sua densidade de morte e seu cheiro de pûs que superpunham-se a todo o drama encenado entre quatro paredes. Li a carta, novamente, agora em voz alta. Olhei para minhas alunas. Fiz um gesto simples de cabeça e todas assentiram. Silenciamos o silêncio da mulher negra.

Na saída, perguntei a Márcia Limma, uma das atrizes pretas mais potentes que já vi em cena: Você faz este texto, Irmã? Ela só me respondeu: Faço, Deni.

Márcia levou a carta para casa e fez silêncio sobre ela até o dia da performance. Até aquele dia, os textos poéticos, dramáticos e narrativos que havíamos lido no curso dispunham nossos corpos neste liame entre vida e arte de que nos falam na academia. O meu exercício de professora ali, assim como na universidade, sempre foi aproximar— texto artístico de realidade, literatura de vida; rasgar a cortina manicomial que separa esses espaços. Tentar desaprender junto com elas o gesto interpretativo cirúrgico, frio e dispensável, que nunca levou a humanidade a lugar algum. Atraiu-me sempre a temperatura ensolarada, que pode fazer brilhar o que de mais vivo existe em nós.

Ivonildes me ensinou que ainda este caminho é morno para o corpo encarcerado da mulher negra. Neste corpo, toda a guerra daquilo que faz o mundo “moderno” subsiste. Ainda contra este corpo, a perversidade torturante dos ofícios e aparelhos da escravidão; sobre ele a vigilância ininterrupta que esvazia todo e qualquer prenúncio reivindicativo de direitos; em seu prejuízo, o saber e a práxis médica e psiquiátrica, assim como o aparato judiciário e policial, com seu desprezo e/ou sua força de retaliação. No corpo encarcerado de uma mulher negra, esta guerra secularmente cotidiana é suja, feia e secreta. A carta traficada por entre portões de ferro e gradis, de mão negra a mão negra, ganhou sorrateiramente a rua e o corpo negro de uma atriz, que daquele verbo em carne viva fez intensidade performativa no grito coletivo: Não sou bicho, sou mulher!

O direito humano ao próprio corpo é aquilo que perdemos quando somos escravizadas e/ou presas. A escravidão, assim como o aprisionamento, propiciam o lento e doloroso processo de desagregação entre corpo e cabeça, entre cabeça e espírito, impingindo, via força necropolítica de Estado (em suas diversas presenças e técnicas), clivagens que agem sobre a memória, a identidade e, assim, sobre a própria condição de humanidade. Se, a partir da perspectiva africana do drama, o teatro é a própria arena da vida, em que somos posicionadas em um circuito de tensões que podem se intensificar até um certo limite humano; o exercício de morte produzido pelo aprisionamento (exponencialmente ascensional para as mulheres negras na última década no Brasil), extrapola este circuito, criando abismos de existência humanamente insuportáveis.

Não me parece inteligível dentro de uma razão cartesiana que esta carta possa ter sido escrita e que tenha chegado aonde chegou. A leitura em voz alta desta carta gerou vertigem e silêncio entre nós. Você que está lendo este texto agora a leu em voz alta?  Se você não é uma mulher negra, minimamente se constrangerá. Há uma dimensão de constrangimento público para quem nunca “veio aqui um dia para ver todos os sofrimentos”. Este constrangimento, muito provavelmente, pode se transformar em temor de perder as balizas de existência social para quem vive seguramente em um mundo de códigos morais estáveis e úteis. Este temor, muito previsivelmente, se transmutará em recusa: negação de aceitar a veracidade da história. Pois de que boca mesmo ela vem?  Que lugar mesmo é este que enuncia essas “infundadas acusações”; essas “alucinações”; “essas mentiras”?

Márcia Limma, mulher preta, leu tudo em silêncio e guardou tudo em seu corpo de atriz até o último momento. Para que a dinâmica do movimento comunicacional encontrasse seu caminho, a narrativa daquela carta percorreu mãos negras, gregárias de Axé ancestral, e encontrou um corpo preparado para a veiculação de uma gestualidade que devolveu à boca inicial um limite de humanidade. 

O vento soprava nas asas dos pássaros vermelhos de pano colados no teto com fita adesiva e a performance executada na penitenciária feminina, em um círculo de movimento intensivo de narrativas do eu que se reconstituía e se curava a cada nova volta de uma das mulheres ali presas, foi encontrando seu ápice no corpo de atriz que guardou um segredo secular, longevo, inumano e que explodiu em um grito coletivo “Não sou bicho, sou mulher” –  grito de guerra que virou (n)o pátio para devolver a cada uma o lugar de humanidade que sustém a potência da comunicação, da reivindicação, do falar para o outro, para si e por si. 

Algumas/uns tiveram olhos de ver. Algumas/uns tiveram ouvidos de escutar. Outras/os se constrangeram, temeram e denegaram que ali havia segredo na dimensão do revelado, “por que quem sente sua dor é que geme”.  

A prisão é isso apenas, suplemento ativo que é da escravidão: o olho do sumidouro, onde se deposita, na zona abismal do que nem se deseja, nem se pode enxergar, o além do limite da humanidade. Para o lucro feroz de algumas dezenas de cotistas herdeiros, selecionam-se a dedo centenas de milhares de Outras/os para lançá-las/los no epicentro de todo o esquecimento humano a partir do qual imagina que possa dormir tranquila a cidade.


Denise Carrascosa é feminista abolicionista e ativista antiprisional, doutora em crítica literária e cultural, tradutora literária, advogada e professora de literatura na Universidade Federal da Bahia. Lidera, há 12 anos, a organização de mulheres negras Corpos Indóceis e Mentes Livres – projeto de extensão que organiza oficinas de leitura e escrita literárias no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito, na Bahia.

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