Comércio internacional de grãos ameaça a Amazônia brasileira

Um esforço para expandir a infraestrutura de exportação no Arco Norte do Brasil está destinado a desencadear novos conflitos fundiários. Comunidades amazônicas resistem.

April 22, 2021

Apanhador de açaí leva a sua colheita por igarapé em Abaetetuba, Pará. (Matthew Abel)

Este artigo foi publicado em inglês no NACLA Report. Traduzido por Rafael Barbi.

Em 22 de março de 2018 um grupo de cerca de trezentos pescadores, agricultores, e produtores agroflorestais se reuniram ao longo de uma praia em Abaetetuba, Pará, para o Grito das Águas. O evento geralmente promove a reivindicação de direitos territoriais e acesso à saúde e educação nas comunidades ribeirinhas daquele município. Mas naquele ano as lideranças direcionaram sua atenção para um trecho de terra onde a Cargill, gigante multinacional do comércio de grãos, planeja construir um terminal de uso privado para a transbordarão de soja e milho. Os moradores colocaram uma faixa na areia. “Chega de grandes projetos”, estava escrito, “que destroem o meio ambiente, tiram a vida do nosso povo, poluem nosso ar, contaminam nossas águas. Não à Cargill!”

As ilhas de Abaetetuba se projetam para a baía de Marajó como um polegar, tentando pegar uma carona ao longo dos últimos trechos do rio Tocantins. Durante mais de dois séculos a península serviu de plataforma de lançamento para os comerciantes ribeirinhos que navegaram no rio Amazonas e seus afluentes. Os ribeirinhos do município, que se encontram nas ilhas castigadas pelo vento, contam histórias dos barcos a vapor que se tombaram em suas costas a caminho do mercado, derramando látex, aguardente e peles de animais na água e através das praias. Hoje, o agronegócio parece estar escrevendo um novo capítulo nesta história mercantil, aproveitando o poder do rio Amazonas e dos seus afluentes para escoar mercadorias no mercado global.

Durante a última década as maiores empresas mundiais de comércio de grãos – conhecidas como ABCDs: Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill, e Louis Dreyfus – se envolveram numa guerra de licitação pública para expandir as infraestruturas de exportação em toda a Amazónia, transformando a bacia num corredor de navegação transnacional para soja e milho. Planejadores do Estado e chefes da indústria referem-se a essa nova rota como o Arco Norte: um esquema de desenvolvimento apoiado por empresas que os promotores argumentam que anuncia uma nova era de desenvolvimento económico na Amazónia. Mas os ribeirinhos de Abaetetuba contam uma história diferente. Por baixo da fumaça dos incêndios florestais generalizados, o Arco Norte incentiva o desmatamento e os conflitos fundiários. No entanto, o projeto permanece conspicuamente ausente das atuais discussões sobre as crises sociais e ambientais da Amazónia.

Exportando Soja, Acelerando Crescimento

Na década de 1980, a pecuária expansiva, a grilagem de terras e os migrantes atraídos pelos programas de colonização da Ditadura Civil-Militar geraram uma série de imagens que impulsionaram a Amazônia rumo ao centro da consciência ecológica global. Embora essas cenas tenham moldado a percepção popular da região como uma fronteira agrária, a política de desenvolvimento da Amazônia mudou acentuadamente nas décadas subsequentes, em parte devido à resistência popular. Organizações ambientais globais, acadêmicos, povos indígenas e comunidades camponesas construíram uma aliança que pressionou o governo brasileiro a aumentar as proteções ambientais e conter a maré de desmatamento na Amazônia.

Esses sucessos coincidiram com investimentos na agricultura industrial que temporariamente desviaram o capital da floresta tropical, um movimento que os geógrafos Gustavo Oliveira e Susanna Hecht chamam de "Amazon swerve". Na década de 1990, avanços tecnológicos possibilitaram a expansão do cultivo de algodão, milho e soja com uso intensivo de insumos no cerrado, uma savana transicional que se estende ao longo do planalto brasileiro entre o vale do Amazonas e o litoral oriental. Embora o cerrado seja agora o bioma mais ameaçado do país, os defensores do agronegócio afirmam que a agricultura industrial no Centro-Oeste brasileiro tem uma função de “economia de terras”, conservando a Amazônia desenvolvendo o cerrado como um “celeiro” global.

“Celeiro” acaba por ser uma metáfora esquisita. Apenas 6 por cento dos grãos de soja produzidos globalmente são consumidos diretamente por seres humanos, enquanto ¾ são moídos para ração animal e usado em Operações de Engorda de Animais Através de Confinamento (do inglês: Concentrated Animal Feeding Operation, CAFOs), ou fazendas industriais. A maior parte das exportações brasileiras de soja destina-se à Europa e à China, onde a renda crescente da classe média (não a população) aumentam a demanda para a carne de porco e galinha criados em fábricas.

A soja não alimenta o mundo e nem “poupou” a Amazônia. À medida que as fazendas de soja de avançam através do Centro-Oeste brasileiro, o complexo agrícola dependente da exportação sobrecarregou rapidamente a infraestrutura regional. A maioria dos grãos de soja cultivados no cerrado são transportados em longas distâncias para portos marítimos no sudeste industrializado do Brasil. No entanto, os elevados custos de transporte e as frequentes greves de caminhoneiros levaram os investidores a encarar a Amazônia e a sua vasta rede de rios navegáveis como uma rota de transporte alternativa. A Amazônia ganhou uma centralidade renovada nos planos de desenvolvimento do Brasil, desta vez como um corredor logístico de exportação.

Se concluído, o Arco Norte conectará uma rede de terminais privados de grãos, portos, estradas e ferrovias em uma constelação regional que canaliza a soja através da foz do Amazonas. Esses projetos têm recebido amplos subsídios tanto dos governos de esquerda como de direita. Em 2007 o presidente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), abrindo novas fontes de financiamento público para o desenvolvimento da infraestrutura privada na Amazônia.

Ao expandir as exportações de produtos primários, o governo petista procurou aumentar as reservas de moeda estrangeira e financiar programas sociais para a população baixa renda. Em 2014, a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, discursou na inauguração de um novo terminal da Bunge em Barcarena, município próximo a Abaetetuba. Ela enfatizou a importância estratégica da capacidade de exportação para o setor do agronegócio no Brasil e suas metas de desenvolvimento nacional. Mas depois que os preços globais das commodities começaram a cair em 2014, o lobby do agronegócio no Congresso apoiou o golpe legislativo de 2016 que depôs Rousseff, levando a um ressurgimento extensivo da direita que em grande parte anulou a agenda anti-pobreza.

Apesar de sua aversão aos gastos sociais, a atual coalizão governamental pró-austeridade do Brasil continua a apoiar obstinadamente os investimentos do Arco Norte. Os portos patrocinados pelo Estado agora conectam as fronteiras da soja em Mato Grosso e Rondônia a antigas cidades do ciclo da borracha como Porto Velho e Itaituba, onde os grãos são carregados em balsas e transferidos para navios de navegação rio abaixo. O Arco Norte é responsável por uma participação crescente das exportações de soja e milho do Brasil, aumentando de 14,4 por cento em 2010 para 31,9 por cento em 2019. As empresas multinacionais ABCDs agora competem pelo controle da cadeia de abastecimento.

Desenho logístico do Arco Norte, indicando as rotas dos rios Madeira, Tapajós, e Tocantins.

Investimentos recentes estão concentrados ao longo do estuário amazônico no estado do Pará. Do outro lado da baía de Marajó a partir de Abaetetuba, a empresa Louis Dreyfus tem um terreno em Ponta de Pedras, enquanto a Bunge e a ADM expandiram suas instalações de exportação em Barcarena. Desenvolvedores encontraram aliados nos governos que, por sua vez, desfrutam do patrocínio do setor privado. O antigo secretário de transportes do Pará, um promotor inflexível dos investimentos públicos no Arco Norte, é agora o diretor executivo da Brick Logística, a empresa contratada pela Cargill para construir as novas instalações de transbordo em Abaetetuba. Mais recentemente, o governador do Pará fez uma parceria com investidores chineses para conectar portos estuarinos a novas ferrovias terrestres.

Novas Tácticas Empresariais

A Amazônia não é estranha às vicissitudes do mercado global. Durante séculos, os comerciantes venderam cacau, borracha e castanhas-do-pará rio abaixo para companhias de exportação estrangeiras em Manaus e Belém; as elites amazônicas há muito conquistaram poder político através de seu controle sobre as exportações regionais. Mas hoje, muitos dos antigos seringueiros de Abaetetuba, trabalhadores diurnos e viajantes itinerantes trabalham como pescadores e agroextrativistas, enfrentando as águas com uma mercadoria diferente a reboque: o açaí, um “fashion food” e um alimento básico dietético para os pobres urbanos e rurais da Amazônia.

No estuário amazônico, as noções de direitos de propriedade individual estão bem definidas ao longo das várzeas onde ribeirinhos cuidam de seus açaízeiros. Mas esses grupos também se valem dos recursos das águas e terras-firmes, onde relações informais e acordos coletivos regem os direitos de uso. No auge do sócio-ambientalismo amazônico no início dos anos 2000 tais relações ganharam proteção formal sob o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA). A designação dessas áreas como "assentamentos agroextrativistas" protege os direitos de uso coletivo dos moradores e proíbe a venda de terras a pessoas de fora.

Mas o declínio do financiamento estatal enfraqueceu a autoridade do INCRA na mediação de disputas fundiárias e a influência de movimentos sociais. Em 2011, os herdeiros de uma antiga reivindicação de terras da época da borracha venderam um trato de 357 hectares à Bricks Logistica, sem resistência da agência federal. Em 2017, a Cargill começou a alugar o terreno e apresentou uma avaliação de impacto ambiental para a construção de um terminal de grãos fluviais. A instalação está prevista para abrigar nove silos de 18.000 toneladas que a indústria estima que irão baldear 9 milhões de toneladas de grãos a granel por ano dos portos do Arco Norte rio acima.

De acordo com a lei federal de reforma agrária e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, este lote de terra nunca deveria ter sido vendido sem consultar as comunidades vizinhas. Mas os empreiteiros provavelmente deixaram de lado o INCRA, negociando com outras agências dos governos estadual e federal. Os incentivadores da Cargill argumentam que o projeto trará empregos para o município. Mas os militantes dos movimentos ribeirinhos temem que o porto só venha a exacerbar os males sociais existentes. O tráfico de drogas e de pessoas, o crime organizado e a crescente poluição urbana acompanharam a construção de refinarias de alumínio na vizinha Barcarena, nos anos 80. Em 2018, um vazamento de minério em Barcarena poluiu os açaizais das ilhas mais setentrionais de Abaetetuba. E em 2015 um cargueiro de gado naufragou e encheu as margens do rio com carcaças de boi e petróleo”.

O porto da Cargill, que será construído junto às comunidades ribeirinhas, representa uma ameaça mais iminente para os pescadores das ilhas. O aumento do tráfego marítimo perturbará os pescadores tradicionais e colocará em perigo a pesca já debilitada. Entretanto, os moradores também temem os impactos indiretos do projeto. Ao longo do baixo Amazonas em Santarém, a construção de um porto de Cargill em 2003 desencadeou um boom de soja naquela região. Os colonos sulistas afluíram para o novo corredor de exportação, provocando conflitos de terra com pequenos proprietários regionais e poluição por pesticidas e fertilizantes. Os líderes se preocupam que o Abaetetuba possa ser a próxima na lista.

Quase abandonados pela burocracia federal, os moradores decidiram enfrentar a empresa por conta própria. Em 2017 a freguesia católica das Ilhas de Abaetetuba associou-se a duas organizações de justiça social localizadas na capital do estado de Belém para organizar seminários com lideranças comunitárias. A iniciativa alertou os moradores sobre a construção do porto e seus direitos de consulta de acordo com a legislação brasileira e internacional. Os líderes organizaram encontros como o Grito das Águas, ocuparam o conselho municipal e participaram de protestos de rua anuais. Apesar de uma campanha popular impressionante, as autoridades rejeitaram as demandas dos ativistas.

Estes conflitos não são exclusivos a Abaetetuba e reverberam numa escala regional. No sudoeste do Pará, os índios Kayapó protestaram contra a construção da Ferrogrão, uma ferrovia de grãos que os investidores esperam que contorne a congestionada BR-163 e transporte de soja para instalações portuárias perto de Itaituba, ao longo do rio Tapajós. Um relatório do Instituto de Políticas Climáticas para 2020 projeta que a ferrovia induzirá os produtores de soja a desmatar mais de 2.000 quilômetros quadrados de vegetação no estado do Mato Grosso. O governo do Pará garantiu investimento chinês para completar a Ferrovia Paraense, que atravessaria territórios indígenas para ligar as instalações de exportação do estuário às minas regionais e à chamada "Matopiba", as terras fronteiriças nordestinas do cerrado e a mais nova fronteira de soja do Brasil. Enquanto isso, os investimentos portuários ao longo do rio Madeira ajudaram a reacender a fronteira agrária de Rondônia e incentivaram a proposta de asfaltamento da abandonada BR-319. A rodovia teria impacto em 63 territórios indígenas regularizados e abriria enormes extensões de floresta para o desflorestamento. Estas são precisamente as regiões que, em 2019, sofreram com incêndios florestais generalizados, produzindo uma nuvem de fumaça tão espessa que chegou a tapar o sol muito longe dali, em São Paulo, capital.

As Queimadas D'Água

As chamas engoliram a Amazônia novamente em 2020. Durante os últimos dois anos a mídia internacional publicou uma série de reportagens assombrosamente familiares para a geração de ativistas que protestaram contra a violência cometida contra as comunidades e ecossistemas amazônicos nos anos 80. Garimpeiros e madeireiros espalharam o novo coronavírus nas comunidades indígenas através de invasões ilegais, e as taxas de desmatamento dispararam precipitadamente à medida que o governo minou as proteções ambientais.

Mas os conflitos ambientais atuais são mais do que apenas um eco desse impulso antigo da fronteira. As queimadas recentes são mais parecidas com os tipos de manobras de especulação financeira que definiram a política de re-desenvolvimento nas cidades do interior dos EUA nos anos 60 e 70. Assim como as empresas imobiliárias americanas procuraram manipular a construção de rodovias federais e jogar bairros uns contra os outros para ganho privado, os empreendedores fundiários contemporâneos na Amazônia estão tentando desviar a renda dos investimentos em infraestrutura público-privada. Em sua etnografia da especulação fundiária ao longo da BR-163, o antropólogo Jeremy Campbell sugere que muitas práticas de uso da terra na Amazônia fazem parte de um processo de "acumulação especulativa", no qual os colonos tentam legitimar a grilagem sobre reivindicações duvidosas de terras e vendê-las a quem pagar mais.

Ao redefinir a Amazônia como um efluente do comércio global de soja, o Arco Norte acelerou a especulação fundiária através de uma enorme extensão geográfica, desencadeando conflitos locais com consequências diretas para comunidades como Abaetetuba. Entretanto, a natureza difusa destas consequências torna fácil para as grandes empresas desviar a culpabilidade para um elenco familiar no drama do desmatamento: o madeireiro de fronteira, o pequeno especulador de terras ou o político corrupto. Empresas como a Cargill têm o cuidado de não sujar suas mãos em associações com desmatadores; entretanto, suas participações financeiras são comprovantes suficientes. Os comerciantes de grãos ABCD controlam 90 por cento do comércio transnacional de soja e são alguns dos principais beneficiários dos incêndios e conflitos que abrem novas rotas comerciais através da Amazônia.

O Arco Norte pode prometer lucros rápidos aos capitães do agronegócio. Mas o futuro dos que ficam no banzeiro dos caminhões, ferrovias e barcos transoceânicos permanece incerto. Abaetetuba sofre muitos dos mesmos problemas sociais que assolam outros municípios amazônicos: deterioração do acesso à saúde, escolas públicas sem professores, e intensificação da criminalidade. Apesar destes desafios, os habitantes locais continuam a responsabilizar as multinacionais pelas consequências sociais e ambientais da acumulação privada. Nas décadas de 80 e 90, o povo da Amazônia, incluindo seus ribeirinhos, procurou o apoio de uma rede ativa de ambientalistas globais, defensores da justiça social e reformistas. O destino da floresta pode depender de sua capacidade de reconstituir essas alianças transnacionais nos dias de hoje.


Matthew Abel é pesquisador e doutorando em Antropologia Sócio-Cultural na Universidade de Washington em St. Louis. Sua pesquisa versa sobre as interações entre os movimentos sociais rurais e a mudança dos regimes de desenvolvimento no estuário amazônico brasileiro.

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