Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.
Imaginemos que, em uma reunião do Conselho Universitário da Universidade de São Paulo, uma das maiores universidades da América Latina os/as docentes fossem questionados/as: “como você chegou até aqui?”. Supõe-se, nesta cena, que a maioria das respostas giraria em torno de asserções como: “Estudei muito”, “Tive uma boa formação e me esforcei”, “Sempre quis ser professor da USP então lutei muito para isso”, ou seja, de enunciados que remetessem às qualidades individuais de seus/suas emissores/as. Em outras palavras, na suposição que ora produzimos, pouquíssimas respostas mencionariam o fato de que os/as professores/as em questão são brancos/as e que isso facilitou sua inserção nos postos mais altos da carreira universitária.
Continuando o argumento: se perguntássemos para o mesmo grupo qual a explicação para que, entre os 5.820 professores daquela universidade, apenas 2 por cento esteja entre o grupo de pardos e pretos, é bem possível que muitos respondessem que a causa para tal desproporcionalidade seja o racismo estrutural, o legado da escravidão e muitas outras respostas associadas às desigualdades raciais. Dessa forma, cabe-nos perguntar quais são os discursos e narrativas que sustentam a possibilidade de que ao mesmo tempo em que se reconheça o racismo para justificar as desvantagens que atingem aos negros e indígenas de nossa sociedade, por outro lado não seja reconhecido que os lugares de prestígios ocupados por cada branco/a também estejam associados à pertença racial.
Qual a lógica que rege o fato de que em um país como o Brasil em que 54 por cento da população se declare negra, os lugares de poder estejam ocupados em sua quase totalidade por pessoas brancas? Que mecanismos ideológicos estão em jogo para assegurar aos brancos a ocupação de posições mais altas na hierarquia social, sem que isso seja encarado como privilégio racial? Quais as crenças e discursos que sujeitos brancos produzem e reproduzem para que sejam beneficiados na estrutura social e, ao mesmo tempo, desresponsabilizem-se e se isentem dos problemas advindos da injustiça social que afetam aos negros e indígenas em nosso país?
Nosso argumento aqui neste ensaio é que, no discurso brasileiro, as ideologias do mérito e do racismo andam lado a lado. “No Brasil,” de acordo com Silvio Luiz de Almeida, “a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance”. Nesse sentido, a meritocracia aplicada injustamente no seio da sociedade brasileira coligada ao racismo passa, então, a alocar posições de poder hierárquicas que visam monopolizar o aparato social, político e econômico. Desta forma, a supremacia branca, afirma Almeida, é “uma forma de dominação que é exercida não apenas pelo o exercício bruto do poder, pela pura força, mas também pelo estabelecimento de mediações e pela formação de consensos ideológicos”.
O mito da democracia racial
Ainda que todas as evidências apontem o racismo como explicação mais sólida para as desigualdades raciais, o racismo brasileiro tem a especificidade de, em maior ou menor grau, ser camuflado pelo mito da democracia racial. A ideologia da democracia racial tem raízes anteriores a 1930. A expressão, entretanto, aparece pela primeira vez, de acordo com Antônio Sérgio Guimarães, em um artigo de Roger Bastide publicado no Diário de São Paulo, em 1944, no qual eram usados os termos “democracia social” e “racial” para descrever a ausência de distinções rígidas entre brancos e negros no Brasil, em suposto contraste com os Estados Unidos. Guimarães aponta também que a expressão evoca essencialmente dois significados: o primeiro subentende que todos os grupos raciais vivem na mais perfeita harmonia, enquanto o segundo remete, no mínimo, a um ideal de igualdade de direitos, e não apenas de expressão cultural e artística.
O ideal de “democracia racial” faz parte do imaginário brasileiro e constrói um senso de identidade nacional do qual os brasileiros, em sua maioria, não abrem mão. Carlos Hasenbalg aponta que o conceito de democracia racial é uma arma ideológica produzida por intelectuais das elites dominantes brancas, destinada a socializar a população brasileira de brancos e não brancos como iguais, evitando, assim, um conflito racial no Brasil.
No Brasil, um dos pontos que fundamentou esse mito é o fato de que, em uma parcela da população, a miscigenação foi exaltada como uma caraterística positiva de igualdade racial, no entanto este ideal de miscigenação ignorava que entre os grupos raciais estes não eram vistos de formas igualitárias, mas sim hierárquicas, portanto essa justificativa esconde as formas históricas e ideológicas em que a miscigenação brasileira se sustenta, uma estratégia política e racista de tentar embranquecer a população brasileira e uma ideia sobretudo incentivada com a vinda de imigrantes europeus. Dessa forma, a miscigenação configurou um evento político eugenista e racista com vistas a homogeneizar, embranquecer e elaborar a identidade nacional do povo brasileiro.
A função do mérito na construção da desigualdade racial
A palavra “mérito”, de acordo com o dicionário Houaiss (2012), é sinônima de “merecimento”, por sua vez descrita como: “capacidade: aptidão, engenho, competência, dom, dote, idoneidade, inteligência, saber e talento; inaptidão, incapacidade e incompetência”. A enunciação do termo é cada vez mais constante no cenário brasileiro. Ainda que partamos do senso comum do item lexical dicionarizado, é importante perceber aqui como o mérito é visto como uma característica dos seres humanos, habilidades individuais, algo inato e/ou desenvolvido ao longo do tempo.
A meritocracia, por sua vez, é um sistema ideológico (im)posto nas sociedades, cabendo a cada pessoa receber recompensas a partir do seu esforço, de acordo com Stephen J. McNamee and Robert K. Miller. Para Suzana Maia, a meritocracia “é uma perspectiva de acordo com a qual o indivíduo ocupa uma determinada posição na hierarquia social devido ao seu próprio mérito, ou vontade e capacidade individuais”. Tal perspectiva negligência a relação dos indivíduos com seu grupo social, e torna apenas coincidente o sucesso individual e o fato de o vencedor pertencer a camadas privilegiadas da população, com acesso a bens materiais e simbólicos que são negados à maioria da população.
A meritocracia emerge aqui como uma representação ideológica que paira no tecido social brasileiro, encabeçada, sobretudo, pelo sistema dominante vigente. É possível afirmar que sua significação política estabelece uma lógica direta entre mérito e poder, meritocracia e hierarquização. Dessa maneira, para aqueles/as sob os quais tal ideologia incide, a desigualdade é justificada e legitimada como justa, pois partiríamos do mesmo lugar para obter nossos objetivos, e o gesto de fazê-lo corresponderia ao mérito individual.
No Brasil, a meritocracia alicerça diversas instituições, tais como: critérios de avaliação escolar, vagas de emprego e cargos em templos religiosos. Almeida, por sua vez, descreve-a da seguinte forma: a meritocracia se manifesta por meio de mecanismos institucionais, como os processos seletivos das universidades e os concursos públicos. Uma vez que a desigualdade educacional está relacionada com a desigualdade racial, mesmo nos sistemas de ensino públicos e universalizados, o perfil racial dos ocupantes reafirma o imaginário que, em geral, associa competência e mérito a condições como branquitude, masculinidade, heterossexualidade e cisnormatividade. Completam o conjunto de mecanismos institucionais meritocráticos os meios de comunicação —com a difusão de padrões culturais e estéticos ligados a grupos racialmente dominantes— e o sistema carcerário, cujo pretenso objetivo de contenção da criminalidade é, na verdade, “controle da pobreza e, mais especificamente, controle racial da pobreza”.
Atualmente, a meritocracia está estritamente ligada à concepção neoliberal que, por sua vez, está centrada no individualismo, caracterizando, portanto, o mérito enquanto uma ação individual. A partir da década de 1970, a ideologia neoliberal consolida-se como um sistema político e econômico, preconizando a privatização do serviço público e, como já dito, incentivando o individualismo numa sociedade marcada por sérias desigualdades. De forma recíproca, a meritocracia baseada na premissa de sucesso individual se retroalimenta desse sistema vigente, produzindo a responsabilização dos sujeitos por aspectos de sua vida que concernem à estrutura social e estimulando a competitividade. É assim que cada uma passa a responder por seu próprio declínio ou ascensão.
A crítica que este texto perfila diz respeito à continua dispersão da meritocracia e da prerrogativa do mérito sem que seja analisada criticamente a lógica excludente, desigual, assimétrica e racista de nosso país. Nesse sentido, as seguintes questões podem ser formuladas: quais foram os sujeitos que se beneficiaram e continuam se beneficiando da ideia de mérito? E quem são aqueles/as que acabam socialmente excluídos pelo funcionamento da crença na meritocracia? Enunciados bastante cotidianos como “basta você querer que você consegue”, dispersos irrefletidamente pelo tecido social, deflagram o funcionamento de uma trama discursiva e ideológica que naturaliza as desigualdades existentes e apaga a lógica supremacista branca.
A supremacia branca e a especificidade brasileira
Em abril de 2021, em meio à agressiva segunda onda da pandemia de Covid-19 no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro e vários de seus ministros participaram de um almoço de negócios feminino em São Paulo. Por fim posaram para uma foto. Na foto, Bolsonaro está mais ou menos no meio de uma multidão de mais de 30 pessoas—todos são brancos e quase todos estão desmascarados. Mesmo com o Brasil se tornando o epicentro global da Covid-19, essas pessoas que ocupavam importantes posições de poder político e econômico se viam isentas do uso de máscaras, uma ação tomada para proteger os outros, especialmente os mais vulneráveis. São pessoas que articulam toda a pirâmide social.
Vejamos alguns dados: em 2021, de acordo com o jornal O Globo, dos 228 militares do alto escalão da força aérea apenas três se consideram pretos. E uma matéria da Folha mostra que, de 2012 em diante, na lista da Forbes, todas as pessoas que figuram como bilionárias são brancas, em sua homogeneidade homens. Esses exemplos nos mostram como cargos de poder são exclusivos para pessoas brancas sem que isso seja nomeado como hierarquia racial.
A supremacia branca é o resultado da dominação colonial e da reprodução desta na contemporaneidade, e precisa ser entendida em âmbito global, como a manutenção dos recursos econômicos, das decisões políticas, da indústria cultural, do sistema de justiça e do controle sobre estes nas mãos de indivíduos brancos. Assim, entendemos que a supremacia branca se trata da exploração e da ideia de superioridade racial das relações cotidianas, privilegiando apenas as pessoas de seu grupo racial em detrimento de todos os demais e acarretando, assim, em ganhos materiais e simbólicos para esse grupo. O privilégio branco é fruto dos episódios de racismo cotidiano, tendo-se que vantagens são construídas e concedidas sob a égide do racismo.
A incidência do privilégio branco reverbera nas relações cotidianas, de forma que a pessoa reconhecida como branca começa a usufruir de ganhos a partir dessa brancura. É fácil constatar as diferenças do tratamento dado a brancos e negros em nossa sociedade, basta olhar para o cotidiano e perguntar: Quantos brancos são diariamente perseguidos dentro de um shopping center por serem confundidos com um ladrão? Quantas pessoas brancas são vistas serem paradas diariamente numa abordagem policial no meio da rua? Ou já foram rechaçadas e humilhadas em virtude de sua cor? Privilégio branco é ser bem recebido/a em todos os espaços só por ser branco/a. Como afirma o teórico Zeus Leonardo: “O privilégio é concedido mesmo sem o reconhecimento de um sujeito de que a vida é um pouco mais fácil para ele. O privilégio também é concedido apesar da tentativa do sujeito de se desidentificar com a raça branca”.
Ainda que o sujeito branco tente renunciar à sua brancura, isso não é possível. Há todo um sistema hierárquico de poder que alimenta cotidianamente os aspectos da brancura. Segundo Ana Amélia Paula Laborne, “a branquitude funcionaria como privilégio racial sustentando a chamada supremacia branca, responsável pela dominação de outros grupos raciais”. Logo, a supremacia branca é incumbida pela construção de valores e significados que elaboram o espectro da branquitude. Se o sistema beneficia pessoas brancas é justamente porque o grupo que tem controle e regula esse sistema é o grupo racial branco.
Retomamos Leonardo, que elucida que o discurso sobre privilégio vem com a infeliz consequência de mascarar a história, ofuscando os agentes de dominação e removendo as ações que deixam claro quem está fazendo o quê e a quem. Em vez de enfatizar o processo de apropriação, o discurso do privilégio centra a discussão nas vantagens que os brancos recebem. Ele confunde os sintomas com as causas. Vantagens raciais podem ser explicadas por meio de uma história mais primária de exclusões e práticas ideológicas. Diante disso, é essencial definir privilégio branco e diferencia-lo de supremacia branca, mesmo que ambos sejam relacionais e se tratam de diferentes prismas da branquitude. Segundo Leonardo, “a dominação branca nunca é resolvida de uma vez por todas; é constantemente restabelecida e reconstruída por brancos em todas as esferas da vida”.
Essa lógica de supremacia branca à brasileira distingue-se de países como Estados Unidos e África do Sul exatamente pelo fato de que ela é velada e funciona como um pacto social, portanto não precisa ser anunciada por leis discriminatórias e discursos explícitos de superioridade branca. Além disso, essa supremacia foi sistematicamente negada pela alegação de que o preconceito no país era algo ligado à classe; no entanto, contrapondo-se a essa lógica, os estudos que isolaram estatisticamente os fatores ligados à classe mostraram que há desigualdades sociais que permanecem e, portanto, só podem ser explicadas quando se introduz o par branco e não branco. Neste caso, não se trata de recolocar a raça em parâmetros biológicos, mas como construções sociais que funcionam como mecanismo de privilégios, demarcação e hierarquização de grupos.
Ainda, é possível dizer que a supremacia branca brasileira leva a população negra a uma situação de pobreza e mesmo de indigência que constitui, em si mesma, um mecanismo de hierarquização e conduz a formas de dependência e subordinação pessoal que, por si só alimentam o imaginário de “superioridade racial branca” e, portanto, ajudam ainda mais a dissimular o racismo do ponto de vista das ações individuais. O mesmo argumento pode ser utilizado para explicar o caráter de omissão dos governos e das instituições com respeito a produção de políticas públicas e sociais que combatam às desigualdades raciais. Portanto, tanto a construção ideológica do mito da democracia racial, típico do Brasil, quando a ideia de mérito que se disseminou ainda mais a partir da década de 1980 com o neoliberalismo têm constantemente funcionado como retroalimentação para a legitimação da supremacia branca sem que esta precise ser afirmada como tal.
Podemos voltar à cena hipotética citada no início deste texto, na qual perguntaríamos aos/às professores/as da USP as causas pelas quais não haveria professores negros naquele ambiente. Entende-se, assim, que só haveria duas formas de responder àquela questão: ou os brancos se acreditam superiores —e, portanto, os negros seriam inferiores— ou a resposta apontaria para o racismo estrutural e as discriminações diárias para que aquele fosse o resultado. Quem nega que a maioria dos lugares de poder é ocupados por brancos devido às vantagens estruturais só pode estar de fato acreditando na superioridade branca e, portanto, usando a chave racista.
Nesse sentido, tanto a ideologia do mérito quanto o mito da democracia racial —o primeiro propagando a ideia de que as pessoas alcançam o poder por esforço e características individuais, e o segundo propagando a ideia de que há oportunidades iguais—são os consensos ideológicos que sustentam a supremacia branca sem que esta seja vista como tal. Assim, indivíduos brancos conseguem reconhecer que negros estão em desvantagens no tocante ao exercício de direitos e, ao mesmo tempo, esses indivíduos não assumem que possuem vantagens inerentes ao seu status como pessoa branca, pois assumir este lugar de vantagem estrutural seria reconhecer que meritocracia não existe e que todas as suas conquistas foram realizadas graças à estrutura social racista.
Lia Vainer Schucman é doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina. Autora dos livros Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo (Veneta 2020) e Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor (EDUFBA, 2018).
Willamys da Costa Melo é mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGP/UFSC).