Este artigo foi publicado originalmente em inglês no NACLA Report, nossa revista impressa trimestral.
Em 17 de novembro de 2022, duas semanas após as eleições presidenciais, o povo Kanamari do Vale do Javari divulgou, através de sua associação principal (AKAVAJA), um documento público para relatar um caso de ameaça de morte contra uma de suas principais lideranças que aconteceu na manhã do dia 9 do mesmo mês, que chama de uma “carta” de “pedido de ajuda”. A situação de ameaça aconteceu no interior da Terra Indígena. Eram cerca de 30 indígenas quando depararam, no rio Itaquaí, com barcos de pescadores carregando quelônios e pesca ilegal. Abordados, inicialmente ofereceram tracajás e quelônios em troca do silêncio. Até que uma importante liderança feminina do povo Kanamari foi intermediar o conflito, questionando a invasão. Foi ameaçada de morte, com uma arma apontada para o seu peito, e escutou um dos pescadores dizer que “as mortes no Vale do Javari não vão findar até que as principais lideranças sejam assassinadas”. Ela estaria na lista.
E seguida, a carta reproduz as palavras da ameaça: “Vou tirar a máscara para você ver meu rosto e te avisar que por conta de situações assim que Bruno e Dom foram mortos pela nossa equipe e você será a próxima. Só não te matarei agora porque estamos na presença de muitas crianças”. Narram que os pescadores seguiram a intimidação, com ameaças, cortaram a fiação do motor, e saíram atirando em direção as canoas dos indígenas, perfurando tambores de gasolina que estavam no teto.
Desde a morte de Marielle Franco, um novo padrão de violência contra defensores de direitos humanos e ambientais foi estabelecido no Brasil. Na Amazônia, a notícia do assassinato de Franco veio na sequência de ataques brutais, incluindo um massacre em 2017 por garimpeiros de até 10 membros de um grupo indígena isolado no Vale do Javari. Todos impunes, esses ataques eram mensagens utilizadas por setores do latifúndio e da mineração para expressar a contundência política com a qual defenderiam seus interesses.
As ameaças sofridas pelo povo Kanamari no Vale do Javari no final do ano passado demonstram uma violência quotidiana contra os povos ameríndios e as populações tradicionais que tornaram-se legião durante o governo Bolsonaro. Alguns são denunciados, a maioria passa sob silêncio. O que está claro é que as falas e discursos do ex-presidente contribuíram decisivamente a multiplicá-los, funcionando principalmente como um incentivo à ação através do direcionamento da opinião pública. Vozes e ações dissonantes eram imediatamente desautorizadas, como a viagem de reportagem de Dom Philips e Bruno Pereira no Javari, apresentada como uma “aventura”, ou seja, um comportamento irresponsável.
Casos recentes chamam a atenção para um padrão de violências que podem acontecer em períodos de crises de hegemonia. Isto pode revelar os efeitos da crise do bolsonarismo com uma intensificação da violência. Nas fraturas, o regime de terror invade as comunidades. E uma das consequências é também a instauração de divisões internas, cooptação, que enfraquecem os movimentos sociais.
Vale do javari sob ataque
O rio Javari faz parte de um conjunto de afluentes do Amazonas como o Juruá, cujos tributários – infindáveis paranás, igarapés, furos – constituem uma rede de enorme capilaridade unindo as áreas fronteiriças entre Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia nos estados do Amazonas e do Acre. Pontilhada por Terras Indígenas e Unidades de Conservação, que reúne diferentes modalidades de arranjos fundiários para a preservação da natureza, essa região é frequentada por grupos de homens armados desde pelo menos os anos 1990-2000, quando antigos membros do Sendero Luminoso organizam a segurança do transporte de caravanas de pasta base de cocaína provenientes do Peru e da Bolívia em direção aos laboratórios da Colômbia.
A passagem de pasta base, por rios e por terra, bem como o comércio de insumos químicos para a fabricação do cloridrato, fez a fortuna de diversos negociantes das elites locais em Rondônia, no Acre e no Amazonas. A situação tem se complexificado recentemente com a multiplicação de laboratórios e a intervenção do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior organização criminosa do Brasil, nesse contexto.
O Vale do Javari possui, como outros territórios amazônicos, quatro características importantes que contribuem à precariedade da situação dos defensores ambientais. A primeira é o relativo isolamento das áreas sob ameaça, que asseguram na maior parte das vezes a impunidade ou fuga de perpetradores de atividades ilícitas e/ou ameaças. A segunda é a situação estratégica do mosaico de terras protegidas (Indígenas e de Conservação) no que diz respeito ao transporte e à presença de recursos naturais de grande valor mercantil (garimpo, drogas ou simplesmente áreas agrícolas para a expansão do agrobusiness). Uma terceira característica é o controle das vias de acesso e passagem no território por bandos armados. Por fim, a cumplicidade dos dominantes locais, que obstruem as instâncias de representação política – como com controle sobre prefeituras, ou deputados – e as submetem a seus interesses.
São os autodenominados “desbravadores” ou “pioneiros”, aqueles responsáveis pelo avanço da fronteira econômica do colonialismo interno. Os “desbravadores” são, algumas vezes, de prepostos trazidos à região por empreendimentos econômicos, “faz-tudo” de empresas madeireiras, de patrões do garimpo, etc., cuja principal característica, além da devoção canina a seus patronos, é a busca da acumulação por quaisquer meios disponíveis, rechaçando toda e qualquer tentativa de regulação de suas pulsões aquisitivas. Ao sabor da consolidação da fronteira, os “pioneiros” tornam-se os representantes políticos de municípios recém-formados, com total controle sobre o Executivo, o Legislativo, a segurança pública, etc. no local. Estruturalmente incapazes de reconhecer outra verdade que não a de seu irrepressível desejo de promoção social, só lhes resta destruir a legitimidade das instituições que deveriam representar, e tentar relegar à invisibilidade ou à insignificância os outros atores que com eles disputam o território (indígenas, movimentos sociais e quilombolas).
A violência contra essas minorias, traduzindo-se por vezes em assassinatos de lideranças defensores dos direitos humanos e ambientais e contabilizada anualmente pela Comissão Pastoral da Terra e, internacionalmente, pela Global Witness, encontra farta justificação ideológica. De acordo com a Global Witness, dos 342 assassinatos de defensores de direitos no Brasil entre 2012 e 2021, 85 por cento ocorreram na Amazônia, que “se tornou um cenário para o aumento da violência e da impunidade”. A situação é emblemática do processo que o país atravessa de crise política, autoritarismo, ataques a democracia e genocídio dos povos indígenas, como o caso do povo Yanomami que teve grande repercussão no início de 2023.
Ódio à diferença
É necessário ressaltar a predominância cada vez mais evidente de um discurso de ódio como elemento motivador da violência, que parece ir além dos interesses materiais em disputa de casos concretos, como do corte de madeira, ou grilagem de áreas específicas. Desde 2013, um forte lobby foi consolidado no Congresso brasileiro, o BBB: Boi Bala Biblia. É aqui que surge a articulação política do bolonarismo. Desde o primeiro dia de seu mandato, ele atacou os direitos de terras indígenas e quilombolas em favor da invasão de terras para especulação.
Resultados: Bolsonaro reabriu, em sua guerra contra as instituições, terras indígenas, assim como terras sob controle público ou coletivo (parques nacionais, reservas extrativistas), como novas fronteiras de expansão para a conquista privada. O desmatamento, a mineração ilegal de ouro e outras dimensões de violência e assassinatos de povos indígenas têm aumentado sistematicamente. É no arco do desmatamento na Amazônia que eles têm o apoio mais consolidado.
Esse ódio é resultado de uma construção social nos últimos anos e que ao disseminar na sociedade e chegar nas fronteiras econômicas de expansão do capitalismo, articula histórias locais de racismo, da matriz colonial da dominação, e dos processos de desconstrução da humanidade. São características de uma profunda divisão de um país marcado entre inimigos, onde as divergências devem ser resolvidas com a eliminação do “outro”.
Até muito recentemente durante o regime bolsonarista, predominou nas instâncias governamentais o argumento de que, dada a sua incapacidade de produzir mercadoria (i.e, valorizar os recursos das áreas que ocupam), indígenas e populações tradicionais deviam compartilhar o espaço com "empresários” do garimpo, da madeira, do gado e da soja etc. Na ocasião do lançamento do Conselho da Amazônia, no incídio de 2020, antes da pandemia do novo coronavírus ser declarada, Bolsonaro disse: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós. Então, vamos fazer com que o índio se integre à sociedade”. Longe de inspirar-se em ideais de igualdade, tais frases traduziam a ideia de que os direitos constitucionais dos ameríndios, como o direito de viver em suas terras ancestrais, não se justificavam mais.
Traduzindo-se nos pronunciamentos oficiais e nas redes sociais, isso levou à interpretação dos invasores de que “o Bolsonaro autorizou a gente a entrar”, levando a situações cada vez mais violentas cujo corolário é o conhecido genocídio em terras Yanomami. Repetindo a história colonial, eles também fizeram uso da pandemia como uma "oportunidade", a palavra do ministro do meio ambiente, para invadir e conquistar de territórios indígenas. O genocídio Yanomami, alimentada pela garimpo, foi um primeiro escândalo que veio à tona no novo governo com as imagens de desnutrição e relatos de terror impostos por garimpeiros e narcotraficantes, o impressionante número de crianças mortas, denuncias de estupros sistemáticos de mulheres.
Na visão bolsonarista, as terras indígenas, em sua maioria localizadas na Amazônia, estariam sujeitas a da necessidade de maior sintonia com os interesses econômicos da sociedade englobante. Em 2017, quando era deputado federal, Bolsonaro disse: “Onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí”. Em campanha para a presidência em 2018, ele dobrou a pressão, prometendo não demarcar um centímetro sequer de terras indígenas caso se tornasse presidente. “Índio já tem terra demais, vamos tratá-los como seres humanos”, ele disse. Os discursos, desde o início do mandato, incentivaram a Comissão Arns a apresentar uma comunicação ao Tribunal Penal Internacional, em 2019, de “indícios de crimes contra a humanidade” e, especificamente por suas falas, de “incitação ao genocídio de povos indígenas”.
Os ataques de Bolsonaro às terras indígenas remontam a décadas. Em 1993, em meio a uma reação nacionalista conservadora que pintava a demarcação das terras Yanomami como uma conspiração estrangeira para impedir o desenvolvimento econômico do Brasil, Bolsonaro apresentou um projeto de lei no congresso quando era deputado buscando anular a demarcação. No mesmo ano, o conflito no território Yanomami aumentou quando garimpeiros massacraram 16 Yanomami em Haximu e incendiaram sua aldeia.
Ao mesmo tempo, ao longo dos anos, Bolsonaro promoveu ataques mais infames e explicitamente racistas. Durante a campanha de reeleição de 2022, por exemplo, circulou um vídeo de 2016 em que Bolsonaro repetia uma caricatura racista de indígenas. “Quase comi um índio em Surucucu uma vez”, ele disse no vídeo, referindo-se a uma aldeia no território Yanomami. Ele alegou que alguém disse a ele: “Morreu um índio e eles estão cozinhando.” Ele concluiu: “Eles cozinham o índio”. A acusação de canibalismo lembra a estratégia de conquistadores portugueses que utilizavam da expressão para conseguir autorizações de “guerras justas” de escravização e extermínio.
O mundo digital permitiu a produção de uma máquina de ódio. Bolsonaro é chamado de O Mito por seu séquito de apoiadores. Ela reforça o aspecto do Mito, do Líder, da dominação carismática, e a produção da difamação, da violência, do inimigo, de uma guerra constante: uma Guerra Santa (como fala repetidamente Michelle Bolsonaro). Um tsunami de notícias falsas que servem para a construção do terror.
Racismo e violência contra indígenas e defensores ambientais
Entre 2015 e 2017, a violência explodiu no Brasil, o que reflete o período de instabilidade política provocada pelo golpe contra Dilma Rousseff. O assassinato emblemático de Marielle, num período simbólico para os movimentos sociais (durante o Fórum Social Mundial, em Salvador), foi visto como parte de um esforço de poderosos de grupos milicianos no Rio para semear o terror entre ativistas. Os dois homens acusados do assassinato de Franco – um que puxou o gatilho e o outro que dirigiu o carro da fuga – eram membros de uma milícia de extrema-direita com supostos vínculos com a família Bolsonaro. A impunidade de quem ordenou o assassinato, no entanto, destaca a vulnerabilidade dos ativistas.
Na Amazônia, após a eleição de Bolsonaro, o ataque estrutural contra os movimentos sociais no campo, o uso do terror, espalhando medo, eram ferramenta de controle político. As políticas de Bolsonaro pretendiam promover “paz no campo”. “Paz” nestes termos significa um combo político que associa o combate aos movimentos sociais com a liberação de grilagem de terras e do subsolo, e a autorização anti-institucionalizada (isto é, na luta constante contra as instituições) da prática de crimes ambientais.
O período de turbulência foi acentuado entre o final de 2021 e início de 2022, sinalizando tempos de muita atenção. Seja no número de massacres ou de assassinatos de lideranças no campo – os números coincidem pois os massacres elevaram a contagem geral da CPT nestes anos – os períodos mais violentos no campo, ao fazermos uma análise do banco de dados da CPT, foram: 1985-1987 (transição da ditadura para a democracia), meados dos anos 1990 (transição para FHC), 2002-2004 (transição de FHC para Lula) e 2015/2017 (anos do Golpe de 2016).
Dos números levantados pela Comissão Pastoral da Terra nesses períodos sugerem um tipo de padrão de violência. Violência que pode se expressar com mudanças políticas como reações das classes dominantes e do latifúndio diante da iminência de perder poder: transições de poder podem colocar em risco a hegemonia do controle territorial, ou do controle sobre conflitos específicos de acesso e controle dos recursos naturais. Nesse caso, a violência pode aproveitar uma garantia de impunidade (o que parece ser o caso durante o governo Bolsonaro), ou “passar recados” e ameaças de morte, formas de disseminar medo e terror.
Numa sociedade historicamente estruturada pelas assimetrias sociorraciais que atravessam as classes sociais, definindo graus diferenciados de reconhecimento e acesso aos direitos sociais, civis e políticos elementares, as vítimas preferenciais deste genocídio são, fundamentalmente, as comunidades negras urbanas e rurais, bem como os diversos grupos étnicos dos povos originários, chamados genericamente de povos indígenas, também vivendo em contexto urbano, em áreas rurais e em florestas. Como expressão extrema da violência racista, o genocídio cometido por Bolsonaro está tanto relacionado à depuração étnica, quanto ao interesse na exploração econômica das terras e dos corpos. Seja explorar a força das trabalhadoras e trabalhadores negras e negros, ou trabalhadoras e trabalhadores indígenas, do mercado informal, doméstico, do agronegócio, ou então as comunidades espoliadas de suas terras para favorecer grilagem e a concentração da terra.
Os limites da democracia
O poder de convicção dessa negação do outro, que leva a uma passagem ao ato, não desaparece com o final do governo Bolsonaro. A construção de um inimigo imaginário – o comunismo, as minorias étnicas, os homossexuais, as mudanças climáticas, pouco importa – aciona gatilhos no interior da sociedade brasileira e deita raízes profundas em uma moral do ressentimento. Esta acaba por conformar e dividir totalmente o campo político entre “nós” e o “adversário”, esvaziando esse campo como instância de resolução de conflito, e deixando apenas o argumento da força.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) apresentou em agosto de 2022 seu relatório anual de violência contra os povos indígenas captando uma onda crescente, em todas as categorias que mede, nos anos de Bolsonaro: 355 registros de violência em 2021, o maior número desde 2013; 176 assassinatos e 148 suicídios, o maior número identificado desde que o CIMI começou a registrar suicídios em 2014. Casos terríveis de feminicídio como o assassinato de Raíssa Cabreira, Guarani Kaiowá, de 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos, ambas estuprada e morta. Casos como o do povo Guajajara, no Maranhão, defensores da TI Arariboia: Cinco mortes entre 2019 e 2021 (somando 20 na última década), e outros 3 assassinatos agora em setembro de 2022. Tudo sobre conflitos com madeireiros que são defendidos por Bolsonaro. Há 8 reclamações contra Bolsonaro em Haya, algumas apresentadas diretamente pelos povos indígenas através da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
O aumento de conflitos não reflete apenas a dinâmica da opressão, mas também as resistências. São terras ocupadas por indígenas, ribeirinhos, quilombolas, camponeses, que estão sendo atacadas fisicamente – enquanto as unidades de conservação são atacadas no legislativo para mudarem suas configurações. Nestes tempos brutos, laços de união foram refeitos: as resistências populares e coletivas têm sido a melhor forma ainda de enfrentar tempos de tanta violência e medos. Essa dinâmica aparece pelo papel preponderante das mulheres nas lideranças das resistências comunitárias nos últimos anos – e também pelo lado trágico do aumento de violência de gênero nos conflitos no campo.
As terras indígenas mais protegidas nesse período foram também as que as comunidades conseguiram se manter mais unidas, onde lideranças comprometidas souberam controlar divisões, e na luta coletiva tem resistido melhor ao avanço de ilegalidades promovidas pelo governo. O mesmo com comunidades quilombolas, camponesas e ribeirinhas. Em uma pesquisa feita a partir do levantamento de conflitos ambientais, constatamos que as comunidades que estavam unidas para enfrentar os conflitos, souberam também enfrentar da melhor maneira a pandemia. E estas comunidades com maior organização política também enfrentavam melhor a pressão do governo Bolsonaro.
Desde que assumiu o cargo, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva lançou uma operação para expulsar garimpeiros e outros invasores de terra de duas das maiores terras indígenas, o território Yanomami e o Vale do Javari. Em fevereiro, uma comitiva visitou o Vale do Javari para lançar a iniciativa, tendo como integrantes a Ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara e as viúvas de Bruno Pereira e Dom Phillips, Beatriz Matos e Alessandra Sampaio. "Não é possível mais que vivam acuados no próprio território", afirmou Guajajara, destacando que o governo busca investigar “todos os crimes contra indígenas na região".
Em março, uma grande base fluvial da Polícia Federal, chamada de Nova Era, foi deslocada e está atracada em Atalaia do Norte, e duas operações destruíram balsas de garimpo ilegal dentro da terra indígena. O governo federal fala em “retomar a segurança” na região. Um novo inquérito da Polícia Federal apontou que o mesmo mandante dos assassinatos de Pereira e Phillips havia sido o mandante de um crime impune de 2019, o assassinato do indigenista e ex-servidor da Funai Maxciel dos Santos, assassinado por pistoleiros em frente a sua família, após ter liderado uma apreensão de pesca ilegal associada ao narcotráfico. Os líderes locais reconhecem que as mudanças não acontecerão da noite para o dia, mas romper o ciclo de impunidade é fundamental para dissuadir a violência.
O funcionamento deste dispositivo de dominação no Brasil confronta hoje os limites da democracia. Ele expõe o extraordinário enfraquecimento das instituições e gera o risco real de intervenção dessa massa com correias de transmissão entre as forças de segurança e os grupos paramilitares. A forma como o governo Bolsonaro incentivou o pior do senso comum, os preconceitos, o racismo, o sexíssimo, e colocou as fakenews no centro deste dispositivo, causou uma falência do político e da negociação em favor do recurso direto da violência. Sua inspiração vinha do período mais sombrio da ditadura civil-militar, os anos de Emílio Garrastazu Medici (1969-1974). Mas a democracia, para a população racializada, afro e ameríndia, ainda não chegou com suas garantias de cidadania e de direitos, e a Amazônia permanece convivendo com as contradições de um processo de hierarquização social e deshumanização.
Felipe Milanez é ecólogo político e professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia.
Roberto Araújo Santos é antropólogo e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.